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    Até Whatsapp serve como prova: Ponto por exceção pode ter guerra de versões na Justiça

    Crédito: Raphaella Dias/UFMG

    Resumo da notícia

    • Sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro, a MP da Liberdade Econômica instituiu a possibilidade do chamado “ponto por exceção” no registro de frequência dos empregados.
    • Esse modelo prevê que trabalhadores e empresas só registrem as exceções à jornada regular – isto é, quando o expediente foi maior, menor ou em período diferente do que o previsto no contrato de trabalho. A adoção dessa prática precisa ser autorizada em acordos escritos, individuais ou coletivos.
    • A principal mudança para o trabalhador está na possibilidade de ter de entrar na Justiça para cobrar o ex-empregador. Sem o registro de ponto, o empregado vai ter de reunir provas da jornada de fato trabalhada. Até mensagem de WhatsApp, com demandas profissionais fora do horário, pode servir como evidência.
    • Antes de adotar o modelo, empresas devem estudar formas de controlar as “exceções”, para evitar surpresas desagradáveis na Justiça. E até refletir se os novos custos compensam a economia com a burocracia do ponto.

    Registrar a jornada diária de trabalho, o famoso “bater o ponto“, é uma atividade que faz parte da rotina de milhões de trabalhadores no Brasil. Ao longo dos anos, a prática foi se adaptando às novas tecnologias e diferentes formatos foram adotados, como relógios e sistemas de registro eletrônico, além da antiga folha de anotações.

    Originada a partir da chamada “MP da Liberdade Econômica”, a Lei 13.874/2019 traz o que tem potencial de ser a grande mudança nas últimas décadas nesse segmento: a possibilidade da adoção de um registro de “ponto por exceção“. Trata-se de uma prática em que trabalhadores e empresas só seriam obrigados a registrar as exceções, isto é, as jornadas diferentes daquela prevista no contrato de trabalho.

    Como assim? Suponhamos que determinado empregado trabalhe em uma empresa de segunda a sexta-feira, das 9h às 18h. Nos dias em que esse horário for cumprido, ou seja, que o trabalhador entre às 9h e saia às 18h, nada precisaria ser registrado.

    Agora, se um dia o expediente se estender até as 19h, por exemplo, há uma exceção, que, aí sim, deveria ser obrigatoriamente anotada.

    Isso já está valendo? O dispositivo legal, sim, porque já foi aprovado pelo Congresso e sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro. No entanto, pela nova lei, para que seja aplicado, deverá haver “acordo individual escrito, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho”.

    A legislação também foi além no caso das empresas com menos de 20 funcionários. Estas estão dispensadas de registrar ponto. Antes, essa flexibilidade valia para pessoas jurídicas com até dez empregados.

    O que muda para o trabalhador? 6 Minutos ouviu Caio Madureira, sócio da área trabalhista do Tortoro, Madureira & Ragazzi Advogados. Para o especialista, a principal mudança prática está na seara jurídica da questão – isto é, nos casos em que terminam na Justiça do Trabalho.

    Para entender os impactos, podemos voltar ao exemplo de que tratamos logo acima. Suponhamos que o trabalhador tenha dez dias com jornadas além do horário registrados, mas alegue à Justiça que, na verdade, trabalhou mais do que o combinado em 20 dias. A diferença seria devida ao fato de que o empregador coagia o empregado a não fazer o registro, para arcar com menos horas extras.

    O que o juiz deve fazer? Para o advogado, este é um conflito que certamente virá e que vai ter critérios definidos em decisões futuras do TST (Tribunal Superior do Trabalho). A princípio, na avaliação do advogado, aumenta a importância de que o funcionário reúna provas da jornada cumprida.

    “Como a lei obrigava a empresa a registrar, quem tinha o ônus da prova era a empresa. Sendo a marcação por exceção, é o empregado que passa a ter de provar o que de fato ocorreu”, explica. No rol de possíveis provas, além das tradicionais, como testemunhas e comunicações, devem surgir cada vez mais outras proporcionadas pela tecnologia, como mensagens de WhatsApp.

    “Vemos, na Justiça do Trabalho, uma pulverização das provas. Isso deve crescer com a perda do ponto. Se a mensagem mostrar que manteve-se a continuidade da prestação do serviço ao empregador, pode-se considerar extensão da jornada”, afirma Madureira.

    Ou seja, a primeira mudança é o risco de uma guerra de versões, em que as partes usem dos mais diversos meios para comprovar a versão apresentada. Importante lembrar que, desde a reforma trabalhista de 2017, ganhou força o chamado “negociado sobre o legislado” – isto é, mais importante do que a lei é o que está escrito nos acordos individuais ou coletivos entre empregadores e empregados.

    E para as empresas? Os empregadores devem estar atentos, tendo como base o que já vem acontecendo a respeito do chamado “ponto britânico”. Derivada da fama de pontualidade dos habitantes do Reino Unido, a expressão é utilizada para identificar aquele registro de ponto que, de tão perfeito, chega a soar falso.

    Voltando ao caso do empregado fictício dos itens anteriores. É difícil imaginar que ele se apresente ao trabalho diariamente às 9h (não 8h59 nem 9h01), sem nenhuma variação, saindo às 18h (não 17h55 nem 18h05), todos os dias.

    Também chamado de “gabarito”, por conter todas as respostas certas, esse tipo de registro ponto por vezes já é tido como fraude e invalidado completamente pela Justiça. Porque se o trabalhador consegue comprovar que, em meses e meses de folhas de ponto idênticas, ele trabalhou dez, 20, 30 dias diferente do que estava marcado, qual é o valor legal daquele registro?

    É a esse preceito que as empresas devem ficar atentas, por também se aplicar ao “ponto por exceção”. Se a empresa tem registro de dez dias de horas extras de um trabalhador que a processa cobrando 20 e este ex-colaborador consegue comprovar 18 dias, por que o juiz não presumiria toda a versão do empregado, de que foram mesmo os 20 dias alegados?

    Nesse cenário, inverte-se mais uma vez a responsabilidade pela prova, com a empresa precisando de evidências que desmintam a alegação do ex-funcionário, sob pena de ser obrigada a pagar por tudo que é alegado contra ela.

    Então é roubada o “ponto por exceção”? Não necessariamente. Apesar de ter muitas lacunas, uma regulamentação esmiuçada nos acordos individuais e coletivos que institua esse modelo pode garantir os benefícios para as empresas ao mesmo tempo em que evite boa parte do problemas.

    Outro aspecto importante é entender a quem esse tipo de prática é mais ou menos recomendável. Permitido para qualquer empresa com mais 20 funcionários, ele pode ser bom para companhias com algumas dezenas de funcionários, que ganhem com menos burocracia e custos com gestão de pessoal. No entanto, o risco sobe consideravelmente às empresas com milhares ou milhões de colaboradores que, para compensar a falta do ponto, precisem elaborar complexos e por vezes até mais caros sistemas de gestão das exceções.

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