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Fim do “falso sobejo” traz confiança na garantia fiduciária

Autores: Guilherme Andrade Zauli e Amanda de Souza Theodoro

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) voltou a se debruçar recentemente sobre o alcance da legislação que regula a alienação fiduciária de bens imóveis, colocando um ponto final em uma das mais controversas discussões dos últimos anos: a existência ou não do chamado “falso sobejo”.

A decisão representa muito mais do que a resolução de um litígio específico. Seu impacto é profundo para o mercado de crédito, pois reforça a segurança jurídica de uma das garantias mais utilizadas no país e traz maior previsibilidade às instituições financeiras, investidores e consumidores.

A alienação fiduciária de imóveis, instituída pela Lei nº 9.514/97, consolidou-se como a principal garantia nos contratos de financiamento habitacional no Brasil.

Graças a esse modelo, tornou-se possível ampliar o acesso à casa própria, com prazos mais longos e taxas de juros mais acessíveis, pois os credores passaram a contar com um instrumento mais eficiente para recuperação de crédito.

Para se ter ideia, segundo a Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança (ABECIP), apenas em 2024 os financiamentos imobiliários movimentaram mais de R$ 312 bilhões. O volume evidencia a relevância do instituto para o sistema financeiro e para a realização do sonho da casa própria por milhões de brasileiros.

Apesar da relevância desse instituto, a segurança jurídica vinha sendo abalada por interpretações judiciais que acolhiam a tese do “falso sobejo”.

Isso porque, em caso de inadimplência do contrato, o credor é obrigado a executar a garantia — no caso, o próprio imóvel dado em alienação fiduciária. A lei determina que sejam realizados dois leilões públicos para a venda do bem. Se, mesmo após essa tentativa, não houver interessados, o imóvel é consolidado em nome do credor como forma de quitação da dívida.

A controvérsia surgiu porque, segundo a tese do falso sobejo, quando os dois leilões extrajudiciais eram negativos e o imóvel acabava adjudicado pelo credor, este deveria pagar ao devedor fiduciante a diferença entre o valor de avaliação do bem e o saldo devedor do contrato, sob a justificativa de se evitar o enriquecimento sem causa da instituição financeira.

Na prática, no entanto, criava-se uma sobra fictícia, sem que tivesse havido alienação efetiva do bem, impondo ao credor um ônus que a lei não previa.

Essa posição encontrou guarida em algumas decisões judiciais, inclusive no âmbito do próprio Superior Tribunal de Justiça. Como exemplo, cita-se o AgInt no AREsp 2039395/SP (julgado em 15/08/2022, pela Quarta Turma), em que a Corte acolheu tese semelhante de restituição.

Tais precedentes geraram insegurança, uma vez que davam ao texto legal interpretação que extrapolava a literalidade do artigo 27, §5º, da Lei 9.514/97.

Em paralelo, diversos tribunais estaduais, notadamente o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), passaram a fundamentar condenações à restituição de valores com base em princípios como a função social do contrato e a boa-fé objetiva. É o caso da Apelação Cível nº 1017338-30.2023.8.26.0562, julgada em 29/07/2025, pela 30ª Câmara de Direito Privado do TJSP, em que se determinou a devolução de valores mesmo em desacordo com a norma vigente, sob o argumento de preservação do equilíbrio contratual.

A ausência de uniformidade elevava os riscos, repercutindo diretamente no custo do crédito. Em última instância, a insegurança judicial poderia ser precificada em forma de juros mais altos para todos os consumidores.

Foi nesse contexto que, em 25 de agosto de 2025, a Terceira Turma do STJ, sob relatoria da Ministra Daniela Teixeira, confirmou decisão monocrática do Ministro Marco Aurélio Bellizze (proferida em 18 de março de 2024), no Recurso Especial interposto por determinada instituição financeira.

O acórdão reformou decisão da 29ª Câmara de Direito Privado do TJSP, que havia condenado o banco a pagar ao devedor a diferença entre a avaliação do imóvel e o valor atualizado da dívida, sob a alegação de enriquecimento sem causa.

O impacto dessa decisão vai muito além do caso concreto.

Do ponto de vista econômico, reafirma a segurança jurídica da alienação fiduciária e elimina uma das maiores fontes de controvérsia do sistema. Para os devedores, a consequência prática é a quitação da dívida quando frustrados os leilões, ainda que isso implique a perda do imóvel. Já para os credores, garante-se que não haverá imposição de um pagamento fictício, dissociado da realidade do mercado. E, para o mercado de crédito em geral, a previsibilidade da garantia fiduciária significa manutenção de taxas de juros mais baixas e maior estabilidade, beneficiando toda a coletividade.

O precedente é relevante também sob a ótica da política legislativa.

Ao respeitar a literalidade do texto legal, o STJ prestigia o princípio da legalidade e reforça que eventuais mudanças substanciais no regime da alienação fiduciária devem ser feitas pelo legislador, e não pela via judicial. A decisão harmoniza a jurisprudência e devolve ao mercado a confiança de que a garantia fiduciária permanecerá funcionando como previsto em lei, sem surpresas interpretativas.

Em síntese, a posição firmada pelo STJ afasta definitivamente a tese do falso sobejo, uniformiza a jurisprudência e fortalece o ambiente de negócios no Brasil. O resultado é a consolidação da alienação fiduciária como instrumento de crédito sólido e previsível, beneficiando tanto credores quanto devedores.

Ao privilegiar a estabilidade normativa, o Tribunal contribui para um mercado de crédito mais acessível, justo e eficiente, em consonância com os objetivos maiores da política econômica e social do país.