• close

    Harmônicos no sistema elétrico brasileiro

    Carlos Augusto Tortoro Jr., sócio do Tortoro, Madureira & Ragazzi Advogados e responsável pela área de energia elétrica e contencioso estratégico

    Atualmente, o Brasil vive uma situação crítica com relação ao suprimento de energia elétrica e a situação pode piorar ainda mais.

    A matriz elétrica brasileira ainda é predominantemente hidrelétrica (63,5%), segundo dados do Operador Nacional do Sistema – ONS. Porém, mesmo tendo hoje o apoio de termelétricas (22,60%) e uma grande parcela de energia eólica (11,2%) e solar (2,4%), o país enfrenta a pior fase do período de seca dos últimos 91 anos, o que tem afetado drasticamente os reservatórios do subsistema sudeste/centro-oeste, mas também atinge as demais bacias hidrográficas.

    Apesar de tudo, há setores do governo que afirmam não haver preocupação com o abastecimento de energia elétrica, pois atualmente existem alternativas para suprir a eventual carência de hidrelétricas.

    Embora existam alternativas na matriz elétrica do país, a falta de discussão qualificada para o planejamento de integração de diferentes fontes, a dificuldade de investimentos em transmissão de energia elétrica e a falta de clareza nas informações governamentais podem levar a sociedade brasileira a vivenciar algo semelhante ao distante ano de 2001.

    Quando se analisa os relatórios resultantes das investigações e estudos sobre o grande racionamento de energia elétrica que o país sofreu há 20 anos é possível verificar um ponto em comum: a falta de comunicação clara.

    Essa dificuldade de transformar dados em uma comunicação objetiva com a sociedade e os agentes do setor torna-se obstáculo quase intransponíveis para o planejamento. Não obstante, não há como se negar a resiliência desse nicho econômico e engajamento daqueles que trabalham todos os dias para manter o sistema interligado nacional funcionando.

    A inabilidade de comunicação gera um sinal econômico distorcido para a sociedade e investidores. Para a sociedade, quando não há o alerta claro sobre a necessidade de se economizar água e energia elétrica; ou até mesmo com relação ao que realmente deve ser cobrado das autoridades sobre políticas públicas e programas de incentivos financeiros para determinados segmentos econômicos. Para os investidores, qual o caminho adotar na expansão do sistema de geração e transmissão do país.

    Não é possível falar em modernização do setor elétrico, se ainda estamos tentando superar problemas do passado. Ao se verificar as discussões entorno do projeto do Código de Energia Elétrica Brasileiro (Projeto de Lei nº 2/2019 da Câmara dos Deputados), do modelo comercial do setor elétrico (Projeto de Lei nº 232/2016 do Senado), a lei nº 14.052/2020 (Repactuação do risco hidrológico no mercado livre) e, mais recentemente, o tratamento sobre geração distribuída, não é possível identificar uma visão sistêmica de como encaixar todos os interesses em prol do planejamento de longo prazo e da segurança energética sustentável.

    Em uma explicação pouco técnica e delineada por um leigo, harmônicos em um sistema elétrico se constituem em distorções de tensão e corrente causados por agentes externos.

    Todos os temas que constituem o suposto cerne da modernização do setor elétrico brasileiro não têm nenhuma característica de moderno. Alguns são apenas novas roupagens para questões que já existem e fazem parte do setor e precisam apenas de tratamento regulatório adequado, tal como a ampliação do mercado livre. Não há nada de moderno nessa discussão, posto que o conceito legal e regulatório já existem e são amplamente dominados pelos agentes do setor e possuem vasta experiência.

    O mesmo pode se dizer sobre geração distribuída e até mesmo a aguardada repactuação do risco hidrológico, que ainda rende discussões na própria ANEEL. Nenhum desses assuntos é novo ou culminará na modernização do setor elétrico.

    Na verdade eles se configuram como harmônicos em sistemas elétricos. São elementos externos à verdadeira modernização do setor e geram distorções que impedem ou, no mínimo, atrapalham o país a planejar seu caminho para uma transição energética sustentável e com segurança de suprimento e estabilidade no ambiente de negócios.

    Deveríamos estar discutindo como a geração distribuída e as fontes variáveis podem contribuir com a preservação dos reservatórios das usinas hidrelétricas no período seco ano e como esses mesmos reservatórios poderiam viabilizar a ampliação do parque gerador intermitente; ou, como a resposta de demanda ocuparia um lugar importante na equalização de tensão, proporcionando espaço para o operador manobrar o sistema interligado nacional.

    Adicionalmente, os agentes econômicos e institucionais deveriam envidar esforços no desenvolvimento de tecnologias que permitissem a utilização de baterias e hidrogênio na composição de nosso sistema interligado, criando novos nichos de negócio e contribuindo para o desenvolvimento econômico, em especial, consignando segurança de suprimento aos sistemas isolados e aqueles interligados de maneira radial.

    São diversos os temas que conduzirão o setor elétrico brasileiro a uma verdadeira modernização, em consonância com o que o restante do mundo discute. Não se está dizendo que outros assuntos não sejam importantes, pelo contrário, eles precisam do tratamento regulatório e legal adequado, se for o caso, para que direitos sejam resguardados e assegurados, com respeito ao que já foi pactuado. Um setor intensivo de capital e estratégico sob o ponto de vista econômico e social não pode conviver com guinadas repentinas e que não preserve e respeite condições contratuais, ou seja, o setor exige segurança jurídica.

    Precisamos urgentemente tratar os harmônicos com harmonia, mas, a modernização do setor elétrico, cujo horizonte é de longo prazo, não pode ser ofuscada por assuntos colaterais. Eles precisam se integrar ao sistema de maneira cooperativa, de modo que os pilares do marco regulatório sejam respeitados, quais sejam, segurança de suprimento, modicidade tarifária e universalização.

    Nesse contexto, chama a atenção a dificuldade pela qual o sistema interligado nacional vem passando, com restrições hídricas graves e sem que uma discussão ampla e planejada seja realizada pela sociedade e os agentes econômicos e institucionais sobre os rumos da segurança de suprimento energético do país, que possa sustentar uma recuperação econômico necessária, em especial, num cenário pós pandemia.

    Os alertas do ONS e do Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico – CMSE sobre a necessidade de despacho de quase todo o parque termoelétrico brasileiro, bem como o aumento das importações de energia elétrica da Argentina e do Uruguai, demonstram a seriedade da situação e sua urgência, de modo que a comunicação com a sociedade civil e as autoridades devam ser claras e objetivas e sinalizando para indicativos econômicos corretos.

    Ainda há tempo para se resolver tais questões urgentes, mesmo que elas estejam acontecendo há muito tempo, posto que o quadro técnico do setor elétrico é altamente capacitado e possui grande experiência na solução de problemas de planejamento e operacionais. Basta apenas que seja dada a devida importância ao tema que realmente deva ser priorizado. A sociedade brasileira não pode contar somente com a sorte de um período chuvoso abundante.

    Previous Next
    Close
    Test Caption
    Test Description goes like this