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    A Questão Controversa sobre a Responsabilidade por Despesas Condominiais em Relação a Imóveis com Garantias Fiduciárias e seus Efeitos no Mercado de Crédito Imobiliário Brasileiro

    Autor: Guilherme Andrade Zauli

    Resumo

    O presente artigo tem por objetivo analisar as razões e consequências dos recentes julgamentos divergentes do Superior Tribunal de Justiça quanto à possibilidade, ou não, de bens imóveis onerados com alienação fiduciária serem objeto de apreensão decorrente da execução de despesas condominiais. Para o desenvolvimento do presente estudo, serão analisados o Recurso Especial nº 2036289/RS (2022/0344164-7), julgado pela 3ª Câmara, sob a relatoria da Ministra Nancy Andrighi, bem como o Recurso Especial nº 2059278/SC, julgado pela 4ª Câmara, sob a relatoria do Ministro Raul Araujo.

    Introdução

    É notório que o setor da construção civil desempenha um papel extremamente importante no desenvolvimento de qualquer nação, seja por sua função social ao possibilitar o fornecimento de moradias, seja pelo fomento da economia pela quantidade significativa de materiais vendidos para o desenvolvimento de empreendimentos, gerando empregos, além de representar uma sólida opção de investimento.
    No entanto, a maior parte da população não possui condições financeiras que possibilitem a aquisição de imóveis sem a obtenção de crédito junto às instituições financeiras que atuam no mercado (Marin & Mario, 2023).
    De acordo com a Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança (ABECIP), desde o início da série histórica de acompanhamento dessa modalidade de crédito (jan/2002) até o presente momento, considerando a liberação de valores para construção e aquisição de imóveis, foram injetados no mercado nacional mais de R$ 1405538000000,00 (um trilhão, quatrocentos e cinco bilhões, quinhentos e trinta e oito milhões de reais).

    Como não poderia deixar de ser, o custo desse crédito para os consumidores finais está diretamente relacionado à qualidade da garantia oferecida no momento de sua contratação, ou seja, contratos com melhores garantias permitem a concessão de crédito a um custo menor, dado o menor risco da operação.
    Por outro lado, contratos com garantias não tão robustas possibilitam empréstimos com custos mais elevados, uma vez que as instituições financeiras analisam, entre outros fatores, o risco de inadimplência, o custo e o tempo para recuperar os valores liberados.
    Dentre as formas mais comuns de garantia no mercado imobiliário brasileiro, destacam-se a hipoteca e a alienação fiduciária, que serão objeto de análise neste artigo.

    Breve Contextualização das Garantias Hipotecárias e Fiduciárias no Brasil

    Atualmente, existem dois tipos principais de garantias usadas no Brasil quando se trata de imóveis: hipotecas e alienações fiduciárias de imóveis.
    Com base no ordenamento jurídico brasileiro, de forma objetiva, podemos afirmar que a hipoteca pode ser descrita como “um direito real de garantia, para assegurar a eficácia de um direito pessoal” (Nery & Junior, 2022).
    Essa modalidade permite que o credor registre a existência de seu crédito na matrícula do imóvel objeto da garantia, conferindo divulgação perante terceiros e, consequentemente, privilégio em relação a eventuais novas dívidas que o proprietário do imóvel venha a contrair, com a possibilidade de levar o referido bem a leilão, caso não haja o pagamento dos valores devidos.
    Inicialmente, a garantia hipotecária desempenhava um papel importante na liberação do crédito imobiliário, pois assegurava ao credor a existência de patrimônio suficiente para responder pela obrigação assumida.
    No entanto, com o passar do tempo, diversos fatores contribuíram para o enfraquecimento da hipoteca, dentre os quais podemos citar a preferência do crédito tributário e trabalhista em detrimento do crédito concedido pela instituição financeira (ainda que este último tenha sido constituído em momento anterior), a edição de uma Súmula pelo Superior Tribunal de Justiça (Súmula 308) dispondo sobre a ineficácia da garantia hipotecária realizada pelo empreendedor junto à instituição financeira em relação ao adquirente do imóvel, bem como o fato de ser necessário o ajuizamento de ação judicial para a execução da garantia pactuada entre as partes, o que aumenta significativamente o tempo e o custo para a recuperação do crédito.
    Diante desse cenário, o aumento do custo do crédito hipotecário era inevitável e não é mais viável, principalmente para os consumidores com menor poder aquisitivo.
    Com o objetivo de promover a retomada do setor imobiliário, foi instituída uma nova modalidade de garantia, a Alienação Fiduciária, popularmente conhecida como financiamento imobiliário.
    Esse tipo de garantia funciona basicamente da seguinte forma: o consumidor obtém o crédito para a aquisição do bem e, automaticamente, transfere a propriedade do imóvel para o nome da instituição financeira responsável pela liberação dos valores até que haja o pagamento integral da obrigação, momento em que há o retorno imediato da propriedade plena ao patrimônio do consumidor.
    Ou seja, diferentemente da garantia hipotecária, por não fazer parte do patrimônio do devedor, qualquer dívida de responsabilidade do devedor não atingiria o imóvel objeto da garantia relativa ao financiamento imobiliário, independentemente de sua natureza (ainda que tributária ou trabalhista).
    Com o objetivo de conferir maior segurança à operação de crédito garantida pela Alienação Fiduciária, o legislador previu expressamente a responsabilidade do devedor pelo pagamento dos tributos e eventuais contribuições condominiais incidentes sobre o imóvel, durante a vigência do contrato de crédito, devendo este agir em conformidade com o princípio da boa-fé exigido nas relações comerciais, a fim de evitar a imposição da obrigação de fiscalização pelo credor.
    Sobre o assunto, Francisco Loureiro orienta:
    “O parágrafo único do art. 1.368-B do CC ressalva que o credor fiduciário somente responde pelas despesas geradas pela coisa após a sua imissão na posse, depois de consolidada a propriedade plena. Tal regra deve ser interpretada e compatibilizada com os interesses dos credores de despesas geradas pela coisa garantida. Não resta dúvida que o devedor primário das despesas geradas pela coisa é o devedor fiduciante, titular de direito real de aquisição, da posse direta e das faculdades de usar (jus utensi) e de fruir (jus fruendi) do bem. Nessa qualidade, responde com todo o seu patrimônio pela solução das dívidas e deve reembolsar toda e qualquer despesa eventualmente paga pelo credor fiduciário. (…) Isso, porém, não significa dizer que os credores das despesas geradas pela própria coisa garantida fiquem desprotegidos. O crédito tem origem na própria preservação da coisa dada em garantia, de tal modo que o credor fiduciário, ao consolidar a propriedade plena e alienar a coisa a terceiros, se beneficiaria indevidamente com o esforço e os recursos invertidos por terceiros, em hipótese típica de enriquecimento sem causa” (Loureiro, 2016: p. 339).

    A exigência de tal conduta pode ser vista como um pilar fundamental em qualquer ordenamento jurídico, não apenas no Brasil. Por exemplo, com relação à legislação italiana, a presente situação poderia ser analisada sob a perspectiva do artigo 1358 do Código Civil2, impondo ao devedor da obrigação propter rem o dever de agir de boa-fé, pendente conconstione, como argumenta Trabucchi.3
    Deve-se considerar que a finalidade da lei não pode ser interpretada no sentido de privilegiar ou proteger determinada parte (seja o credor ou o devedor da relação), mas sim a instituição de crédito disponibilizado à população em geral, fazendo com que o estrito cumprimento dos termos previstos em lei e contratualmente pactuados, a rigor, exija a boa-fé de ambas as partes durante a vigência do contrato.
    Em prestígio ao crédito garantido pela alienação fiduciária, no que tange à sua execução, pelo fato de o imóvel dado em garantia estar inserido no patrimônio da instituição financeira responsável pela concessão do crédito, em caso de inadimplemento, o procedimento de execução se dá diretamente junto ao Cartório de Registro de Imóveis, sem necessidade de ajuizamento de ação judicial, reduzindo consideravelmente o tempo e o custo da operação.
    Esses fatos possibilitaram a disponibilização de uma modalidade de crédito capaz de atender praticamente toda a população, tendo em vista que, devido à robustez e peculiaridades já descritas acima, possibilita a prática de taxas de juros muito inferiores às demais modalidades existentes no mercado.
    Para melhor ilustrar, de acordo com as informações contidas no site do Banco Central, atualmente as taxas de juros dos financiamentos imobiliários estão entre 8,70% e 12,41% ao ano, enquanto a média dos contratos garantidos por crédito imobiliário varia entre 12 (doze) e 27 (vinte e sete) por cento ao ano.4
    Portanto, fica evidente que quanto menor o risco e menor o tempo para recuperar os valores, menor o custo do crédito disponibilizado à população.

    Análise e comentários dos julgamentos proferidos no Recurso Especial nº 2036289/RS (2022/0344164-7) e no Recurso Especial nº 2059278/SC, do Superior Tribunal de Justiça

    Conforme abordado no tópico anterior, em que pese a existência de previsão expressa no ordenamento jurídico vigente acerca da responsabilidade do devedor fiduciante pelo pagamento de despesas condominiais, recentemente o Superior Tribunal de Justiça emitiu entendimento contrário ao texto legal, bem como à ciência do direito já pacificada.
    Considerando a determinação legal no sentido de que o devedor fiduciante é o responsável por eventuais despesas condominiais e tributos incidentes sobre o imóvel5, a ciência do direito havia se consolidado no sentido de que, na hipótese de determinada execução destinada à satisfação de débitos condominiais, somente seria possível a apreensão nos termos do direito de aquisição do devedor, não havendo possibilidade de arresto do imóvel objeto da garantia em razão de expressa determinação legal que altera a natureza da responsabilidade propter rem para a pessoa do devedor.
    Vários foram os julgados nesse sentido, com a transcrição de parte da ementa proferida por ocasião do julgamento do REsp nº 2036289/RS (2022/0344164-7), pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça da relatoria da Ministra Nancy Andrighi:
    “Embora o art. 1345 do CC/2002 atribua, como regra geral, o caráter ambulatorial (ou propter rem) à dívida condominial, essa regra foi expressamente excepcionada, no caso de imóvel alienado fiduciariamente, pelos arts. 27, § 8º, da Lei nº 9.514/1997 e 1.368-B, parágrafo único, do CC/2002, que atribuem a responsabilidade pelo pagamento das despesas condominiais ao devedor fiduciante, enquanto estiver na posse direta do imóvel.”6
    No entanto, sem qualquer inovação legislativa para justificar a alteração do entendimento já sedimentado, ao analisar o REsp nº 2059278/SC que trata exatamente da possibilidade de arresto do imóvel objeto da garantia, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça conclui que é possível a apreensão do bem, sendo irrelevante a existência de garantia fiduciária.
    Por maioria de votos, os Ministros que integram a referida Turma entenderam que, por representar uma despesa essencial à manutenção do condomínio, em razão de sua natureza propter rem, eventual débito de taxa condominial teria o condão de atingir o bem dado em garantia, mesmo considerando os termos expressos da Lei 9.514/97.

    É importante a transcrição de parte do voto vencedor:

    “A natureza propter rem se sobrepõe ao direito do próprio credor fiduciário, tendo em vista que não é justo colocar sobre os ombros dos demais coproprietários a obrigação de arcar com o rateio dessas despesas, considerando que, por um lado, o devedor fiduciante se sente confortável em não pagar, pois sabe que o apartamento não poderia – nessa tese apresentada até o momento pelo em. Relator – não está sujeito a nenhuma constrição; E, por outro lado, o credor fiduciário também se sente tranquilo, pois, recebendo o dinheiro correspondente ao empréstimo que fez, não será importunado em seu direito de propriedade, apesar da existência de dívidas condominiais que pairam sem definição de pagamento.

    No entanto, a mesma questão já havia sido analisada pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, prevalecendo entendimento absolutamente contrário:

    “7. Embora o artigo 1345 do CC/2002 atribua, como regra geral, o caráter ambulatorial (ou propter rem) à dívida condominial, essa regra foi expressamente excepcionada, no caso de imóvel alienado de forma fiduciária, pelos arts. 27, § 8º, da Lei nº 9514/1997 e 1368-B, parágrafo único, do CC/2002, que atribuem ao devedor fiduciário a responsabilidade pelo pagamento das despesas condominiais, enquanto estiver na posse direta do imóvel. Anterior.

    8. No direito brasileiro, afirmar que determinado sujeito é responsável pelo pagamento de uma dívida significa, no âmbito processual, que seus bens podem ser utilizados para satisfazer o direito substancial do credor, nos termos do art. 789 do CPC/2015.

    9. Ao prever que a responsabilidade pelas despesas condominiais é do devedor fiduciário, a norma estabelece, como consequência, que seus bens serão utilizados para satisfação do referido crédito, não incluindo, portanto, o imóvel alienado em fundo fiduciário, que faz parte do patrimônio do credor fiduciário.

    10. Assim, não é possível a penhora do imóvel alienado em fundo fiduciário na execução de despesas condominiais pelas quais o devedor é responsável, nos termos dos arts. 27, § 8º, da Lei nº 9.514/1997 e 1.368-B, parágrafo único, do CC/2002, uma vez que o bem não faz parte de seu patrimônio, mas do credor fiduciário, admitindo-se, contudo, a penhora do direito real de aquisição decorrente da alienação fiduciária, nos termos dos arts. 1.368-B, caput, do CC/2002, c/c artigo 835, XII, do CPC/2015″8.

    Ao proferir decisão contrária ao posicionamento anteriormente estabelecido, pode-se dizer que o Superior Tribunal de Justiça, órgão do Poder Judiciário responsável por uniformizar o entendimento jurisprudencial da interpretação da lei federal9, não só contribuiu para o aumento da insegurança jurídica em relação à garantia fiduciária, como viola suas atribuições constitucionais.
    Atualmente temos no Brasil a validade de legislação específica prevendo expressamente a impossibilidade de o bem oferecido como garantia fiduciária ser responsabilizado por eventuais despesas condominiais e, ao mesmo tempo, há julgamentos do Tribunal responsável por unificar a interpretação e aplicação da legislação em todo o país, em sentidos opostos.

    Conclusão

    Em consonância com os argumentos apresentados, diferentemente do raciocínio contido no julgamento da REsp nº 2.059.278/SC10, entende-se que a inclusão de credores fiduciários em execuções hipotecárias que tratam de eventuais despesas condominiais contraria o caráter menos burocrático previsto na Lei 9514/97, uma vez que não é necessário recorrer à Justiça para fazer valer a garantia. É um fator essencial para viabilizar o crédito a um custo menor para a população em geral.
    Esse entendimento representa um precedente perigoso, pois transfere para as instituições financeiras detentoras de crédito imobiliário a obrigação de acompanhar o pagamento das despesas condominiais pelos moradores dos imóveis dados em garantia, sob pena de perder parte ou até mesmo a totalidade das garantias prestadas no momento da liberação dos valores.
    A recente decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça prestigia os condomínios, garantindo-lhes liquidez suficiente para a manutenção de suas atividades. Por outro lado, no entanto, prejudica a comunidade como um todo.
    Da mesma forma que a edição da Súmula 308 pelo Superior Tribunal de Justiça contribuiu para o enfraquecimento da garantia hipotecária, o perigoso entendimento recentemente produzido em relação à Alienação Fiduciária causa grave insegurança jurídica, impactando o custo do crédito em face da sinalização do Poder Judiciário no sentido de flexibilizar a robustez da garantia prestada.
    Além disso, se houver necessidade de acompanhar o pagamento de taxas condominiais pelas instituições financeiras, visando preservar as garantias pactuadas, novas taxas certamente poderão ser incluídas em todos os novos contratos de financiamento, onerando os consumidores em geral, mesmo aqueles que estão em dia com suas obrigações.
    Como afirmou o ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, ao participar do seminário sobre Segurança Jurídica, Desenvolvimento Econômico e Métodos Adequados de Solução de Conflitos, em São Paulo: “Um país que não oferece segurança jurídica, que não oferece previsibilidade, que não tem um sistema de precedentes, é um país que afasta grandes investidores. A jurisprudência deve ser completa, coerente e estável. Não pode ser uma loteria”.11

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