Tortoro Madureira e Ragazzi

Projeto de reforma do Código Civil propõe mudanças em herança, direito digital, dos animais e responsabilização de danos morais

Autores: Roberta Toledo

Fonte: Lex Legal

Após um ano e meio de debates, o projeto de lei para a reforma do Código Civil brasileiro foi oficialmente protocolado no Senado. O PL 4/2025, apresentado pelo senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), propõe uma série de alterações que impactam áreas essenciais da vida civil, como direito de família, herança, responsabilidade civil, direito digital e proteção dos animais. O texto é resultado do trabalho de uma comissão de juristas composta por 38 especialistas, sob a presidência do ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

“Este é um momento histórico para o Direito Civil brasileiro. O Código precisa acompanhar as mudanças da sociedade e estar alinhado com o que acontece no restante do mundo. O impacto das novas tecnologias e o dinamismo das relações sociais exigem um Código atualizado e preparado para as próximas gerações”, afirmou Salomão.

Essa será a primeira grande reformulação do Código desde sua última revisão, ocorrida em 2022. Antes disso, o Código havia permanecido praticamente inalterado por mais de 80 anos, evidenciando a necessidade de uma modernização para acompanhar as transformações da sociedade e do ambiente jurídico.

A proposta da comissão de juristas abrange uma ampla gama de temas, desde questões tradicionais do Direito Civil até desafios contemporâneos relacionados à tecnologia e ao ambiente digital.

O PL sugere a revogação do artigo 19 do Marco Civil da Internet, que atualmente isenta as plataformas digitais de responsabilidade por conteúdos publicados por terceiros, exceto em casos de descumprimento de ordem judicial. Se aprovado, o texto poderá abrir caminho para uma responsabilização mais rigorosa de redes sociais e empresas de tecnologia, exigindo uma postura mais ativa no controle de conteúdos ilícitos.

A ideia central é que os provedores de internet só podem ser responsabilizados quando deixam de cumprir ordem judicial para remover determinado conteúdo, o que estabelece um equilíbrio entre a proteção de direitos e a garantia da liberdade de expressão.

“Embora essa mudança possa agilizar a reparação de prejuízos para as vítimas, ela tende a criar um forte incentivo para que as plataformas adotem um controle muito mais severo do conteúdo, agindo de forma preventiva e muitas vezes sem critérios jurídicos claros. Como consequência, há o risco de censura privada ou remoção excessiva de postagens, o que interfere no direito de livre manifestação de todos os usuários”, alerta Caio Brandão Coelho Martins de Araújo, do Ciari Moreira Advogados.

Essa mudança do Marco Civil da Internet acontece em paralelo ao debate no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a constitucionalidade dessa regra, além das discussões em torno do PL das Fake News, que busca regulamentar a atuação das plataformas digitais.

As mudanças impactam também a proteção da personalidade digital, da identidade e dados pessoais, além da regulamentação de conteúdos digitais e a responsabilidade pelo uso da tecnologia.

“O projeto reforça a proteção de pseudônimos, avatares digitais e outras técnicas de anonimização, mas, ao mesmo tempo, proíbe o uso de mecanismos que inviabilizem a identificação de agentes responsáveis, o que pode gerar debates sobre o direito ao anonimato na internet e sua relação com a liberdade de expressão”, afirma Larissa Pigão, advogada especializada em Direito Digital e Proteção de Dados e sócia do Pigão, Ferrão e Fioravante Advogados.

A proposta determina ainda que, na ausência de acordo entre as partes, as dívidas civis sejam corrigidas com juros moratórios fixos de 1% ao mês, além da correção monetária. Essa regra diverge da atual legislação, que prevê a aplicação da taxa Selic, e retoma um modelo mais tradicional, amplamente utilizado pelos tribunais antes da Lei 14.905/2024.

Na área da responsabilidade civil, o PL estabelece critérios mais objetivos para a fixação de indenizações por danos morais, considerando o impacto do dano na vida do indivíduo, sua gravidade e a possibilidade de reversão do prejuízo. Em casos de dano grave com intenção dolosa ou culpa grave, a indenização poderá incluir uma sanção pedagógica, com valor até quatro vezes maior do que o dano moral reconhecido.

Especialistas avaliam que, embora o objetivo seja proteger os direitos individuais, há preocupação com o risco de que critérios mais rígidos dificultem o acesso à reparação de danos em casos de menor gravidade.

“A proposta torna obrigatório um juízo fundamentado que relacione o caso concreto às diretrizes legais, o que considero positivo. Essa mudança tende a mitigar a simples adesão a padrões jurisprudenciais pré-definidos, conferindo maior segurança jurídica ao assegurar que cada situação seja analisada em suas particularidades”, destaca Araújo.

Outro ponto polêmico é a introdução do direito ao esquecimento, permitindo que pessoas solicitem a remoção de informações irrelevantes ou desatualizadas da internet, especialmente quando afetam seus direitos de personalidade. O texto também prevê o direito à desindexação, que consiste em remover links de mecanismos de busca, sem apagar o conteúdo original.

Essa proposta levanta debates, pois o STF já decidiu, em 2021, que o direito ao esquecimento é incompatível com a Constituição Federal. Críticos temem que a medida possa restringir a liberdade de expressão e o acesso à informação.

O projeto sugere transformações significativas no direito de família, como a exclusão do cônjuge da categoria de herdeiro necessário, o que permite maior autonomia para a disposição de bens em testamentos. Além disso, o PL propõe que o divórcio unilateral possa ser feito diretamente em cartório, sem necessidade de processo judicial, agilizando a formalização da separação.

Outra mudança relevante é a inclusão da valorização de participações societárias (como cotas de empresas) na partilha de bens, mesmo que essas participações tenham sido adquiridas antes do casamento ou da união estável. Essa proposta, porém, contraria decisões recentes do STJ, que isentam esse tipo de valorização da partilha.

O texto também avança na proteção dos direitos dos animais, reconhecendo-os como seres capazes de sentir dor e emoções. A proposta de novo Código Civil traz impactos significativos com previsão expressa de que em casos de separação ou divórcio, a guarda dos animais de estimação pode ser discutida judicialmente, levando em consideração o bem-estar do animal e a capacidade dos tutores de proporcionar um ambiente adequado.

A jurisprudência brasileira tem evoluído para considerar os laços afetivos entre os animais e seus tutores, influenciando decisões sobre guarda e responsabilidade, o que ganha ainda mais destaque e relevância ao constar expressamente no texto da lei. A implementação dessas mudanças representa um avanço significativo, alinhando-se às tendências internacionais de descoisificação dos animais e reforçando ocompromisso com a proteção dos direitos dos seres vivos”, analisa Bruno Maglione, sócio, do escritório Fernandes Figueiredo Françoso e Petros Advogados.

“Importante ressaltar que a família multiespécie já é amplamente aceita e reconhecida pela doutrina e pela jurisprudência. Esse artigo positiva a analogia que já vem sendo feita quanto a institutos do direito das famílias, tais como o direito de convivência e os alimentos, aplicados tanto aos filhos menores humanos quanto aos animais de estimação”, destaca Yuri Fernandes Lima, sócio do escritório Bruno Boris Advogados.

A expectativa é que o debate envolva juristas, parlamentares e a sociedade civil, considerando o impacto profundo que as mudanças terão na vida dos brasileiros.

“O trabalho realizado foi hercúleo e merece respeito. Entretanto, o caminho ainda é longo e o debate deve continuar nas casas legislativas, para que os ajustes necessários sejam feitos, para que se evitem inseguranças jurídicas, litigiosidades desnecessárias que se apresentam diante de reduções de capacidades interpretativas, antinomias e vaguezas típicas. As alterações, portanto, flutuam entre o necessário, as inquietações, os retrocessos e as ambiguidades”, avalia Roberta C. Paganini Toledo, da área de direito de família e sucessões do Tortoro, Madureira & Ragazzi Advogados.

O processo de reforma promete ser longo, mas representa uma oportunidade histórica para atualizar a legislação brasileira e adaptá-la aos desafios do século XXI.