Agravamento da inadimplência no mercado livre de energia elétrica
Carlos Augusto Tortoro Jr., sócio do Tortoro, Madureira & Ragazzi Advogados e advogado responsável pela área de energia e contencioso.
Publicado no Canal Energia, dia 31 de janeiro de 2019
O mercado de energia elétrica no Brasil é caracterizado pela existência de dois ambientes de contratação, quais sejam, o ambiente regulado e o ambiente livre, sendo este último a seara onde é possível aos agentes vendedores e compradores pactuarem livremente condições comerciais.
A criação desses dois ambientes de contratação decorreu da alteração do marco regulatório de energia elétrica em 2004, com a perspectiva de permitir a concorrência entre os agentes geradores, de modo que o preço da energia elétrica diminuísse sob a égide da regra de oferta e procura e liberdade de contratação.
Para tanto, os agentes geradores e os compradores precisam estar associados à Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE, que é a responsável por gerir o mercado de energia elétrica no Brasil, sob fiscalização da Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL.
A CCEE é constituída sob a forma de associação civil de direito privado sem fins lucrativos e tem como seus associados geradores, distribuidores, comercializadores e grandes consumidores de energia elétrica, que podem participar do mercado livre.
Ao se tornarem associados da CCEE, os agentes coadunam com a convenção da associação, que, por sua vez, observa as diretrizes estabelecidas pela ANEEL em resoluções normativas e pela legislação federal.
Nesse sentido, é importante mencionar que, mesmo sendo fiscalizada pela ANEEL, a CCEE é uma associação de direito privado e, por isso, conta com regras internas criadas e ratificadas por seus associados, em clara observância ao princípio constitucional de livre associação.
Desta forma, ao pretender migrar do mercado cativo e se tornar um agente do mercado livre de energia, por exemplo, um grande consumidor deverá atender às estipulações contidas no procedimento de adesão da associação, aceitar os termos de seu estatuto e ratificar as regras de operação, tal como todos os demais associados. Isso é a essência do princípio constitucional de livre associação.
Contudo, algumas decisões do poder judiciário têm alterado essa dinâmica e criado uma situação delicada em um ambiente que deveria ser pautado pela liberdade de negociação e contratação entre as partes envolvidas.
Não raras as vezes, observa-se decisões judiciais que permitem a manutenção de grandes consumidores no mercado livre de energia que não mais possuem os requisitos iniciais de participação, muito menos, fazem jus à sua manutenção nos quadros da associação que gere o respectivo mercado.
Há que se notar aqui uma intervenção equivocada no âmbito de uma associação civil privada, bem como num mercado que em nada se relaciona com a prestação de um serviço público essencial de distribuição de energia elétrica.
Nestes termos, três situações temerosas se vislumbram de imediato: i) afronta ao direito constitucional de livre associação; ii) risco de aumento de inadimplência no mercado livre de energia; e iii) afetação à livre concorrência.
Em primeiro lugar, como se trata de uma associação civil, qualquer decisão judicial que permita a manutenção de um agente nos quadros associativos da CCEE, não obstante o agente não ostentar mais as características e condições de associabilidade, trata-se de evidente afronta ao princípio constitucional de livre associação, ferindo o direito dos demais associados.
Como consequência lógica da manutenção de um agente no âmbito associativo da CCEE, sem as condições mínimas previstas na convenção da associação, corre-se o risco de elevação da inadimplência no mercado livre de energia elétrica, afetando os demais associados credores, que rateiam os débitos inadimplidos pelos agentes devedores que não mais deveriam estar operando no mercado.
Por fim, uma decisão judicial que permita a manutenção de um associado inadimplente com relação às suas obrigações afeta de maneira direta o também constitucional princípio da livre concorrência, na medida em que concede ao específico agente o direito de se utilizar de energia elétrica do mercado livre de forma gratuita, causando um desequilíbrio concorrencial em relação aos demais agentes do mesmo segmento econômico que pagam pelo insumo produtivo.
Assim, se o desligamento de um determinado agente inadimplente observou e seguiu todas as regras previstas na convenção da associação, não há argumento capaz de fundamentar uma decisão judicial que impeça este ato, caracterizando uma intervenção prejudicial em um ambiente de negócio moldado sob a égide da livre associação e contratação.
Essa situação deve ser foco de atenção, pois com o aumento de agentes no mercado livre de energia elétrica e a vontade do regulador de estimular essa migração, o impacto da inadimplência poderá ser maior, acrescentando mais um ingrediente perigoso para ser solucionado pelo o setor nos próximos anos.