• close

    Análise da Impossibilidade de Restituição de Excedente em Contratos Imobiliários Garantidos por Alienação Fiduciária em Caso de Leilões Negativos e os Efeitos Negativos Decorrentes do Descumprimento da Regra Vigente

    Autores: José Ragazzi e Guilherme Zauli

    O presente artigo busca analisar as razões e consequências do entendimento que vem sendo produzido pela 29ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, utilizando como objeto de análise o julgamento produzido no julgamento da Apelação Cível 1017164-55.2022.8.26.0562, no que tange à restituição de excedente decorrente de contratos de crédito imobiliário com garantia de alienação fiduciária, se os leilões exigidos pela Lei 9.514/97 não forem bem-sucedidos. Além do aspecto teórico do direito, serão analisados os riscos e efeitos de tais decisões sobre o mercado e a população em geral.

    1. Introdução

    Segundo dados da ABRAINC (Associação Brasileira de Desenvolvimento Imobiliário) em 2022, o setor da construção civil foi responsável por 2,9% de todo o PIB do Brasil, representando um valor aproximado de 287 bilhões de reais.

    Além de desempenhar uma importante função social ao viabilizar a provisão de moradia, esse setor também fomenta a economia nacional devido à quantidade significativa de materiais vendidos para o desenvolvimento de empreendimentos, geração de empregos e por representar uma sólida opção de investimento.

    Para garantir o desenvolvimento do setor imobiliário, a disponibilidade de crédito para aquisição de imóveis é essencial para que o mercado seja cada vez mais atrativo e permaneça aquecido, tendo a alienação fiduciária como principal forma de garantia disponível no Brasil1.

    Como representa como a garantia prestada no momento da concessão do crédito será eventualmente executada, esse fato desempenha um papel crucial na disponibilidade e precificação do crédito.

    Fatores como o procedimento para eventual execução da garantia, ou seja, a eventual necessidade de ajuizamento de ação judicial ou a possibilidade de execução extrajudicial da garantia, interferem diretamente no custo do crédito.

    A regra básica do custo do crédito, objetivamente, pode ser entendida da seguinte forma: quanto menores os riscos, custos e tempo de recuperação dos valores, menores são os juros disponíveis para a população em geral.

    No entanto, apesar da existência de legislação específica que rege a garantia fiduciária, o Poder Judiciário, utilizando os mais variados argumentos, vem produzindo julgamentos em direções contrárias ao que a lei estabelece, gerando a temida insegurança jurídica.

    2. Breve Contextualização das Garantias Imobiliárias no Brasil

    Atualmente, no Brasil, existem dois tipos principais de garantias imobiliárias utilizadas pelo mercado: a hipoteca e a alienação fiduciária.

    Sobre a hipoteca, segundo Carlos Roberto Gonçalves:

    “No direito moderno, uma hipoteca é geralmente concebida e regulada como um direito de garantia que consiste em sujeitar um imóvel, preferencialmente, ao pagamento de uma dívida de outrem, sem retirá-la da posse do proprietário. Caso a solução não ocorra, o credor poderá exercê-la, vendendo-a judicialmente e tendo primazia sobre o produto do leilão, a fim de cobrar a totalidade da dívida e seus acessórios.” (Gonçalves, 2017)

    Em relação à alienação fiduciária, segundo Arnaldo Rizzardo:

    A mais importante das garantias, e uma das grandes novidades do sistema, consiste na alienação fiduciária do imóvel financiado. O Artigo 22, caput, conceitua essa transferência: “A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciário, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou alienação fiduciária, do bem imóvel”. (Rizzardo, 2014)

    Sobre as garantias hipotecárias, alguns fatores têm contribuído para seu uso cada vez mais restrito devido ao aumento do custo do crédito devido à burocracia e risco para a retomada do crédito.

    Podemos citar como exemplo de riscos na recuperação de crédito hipotecário a questão da preferência de créditos trabalhistas e tributários, sujeição da garantia ao eventual plano de recuperação judicial, além da emissão da súmula 308 pelo Superior Tribunal de Justiça, tornando esse tipo de garantia ineficaz em relação ao adquirente do imóvel junto à incorporadora responsável pela entrega do bem.

    Analisando as situações acima, é possível identificar a fragilidade da garantia em detrimento de situações incertas, aumentando o risco da operação e, consequentemente, aumentando o custo do crédito.

    Além disso, se necessário, a execução da garantia, até a recente promulgação da Lei nº 14.711, de 30 de outubro de 2023 (Marco Geral das Garantias), deverá ser obrigatoriamente realizada por meio da Justiça, o que aumentou ainda mais o custo e o prazo para a recuperação dos valores concedidos a título de empréstimos.

    Devido a esses fatores, considerando a necessidade de instituir um novo tipo de garantia mais robusta e menos burocrática, por meio da Lei 9.514/97, foi instituída no ordenamento jurídico brasileiro a alienação fiduciária de imóveis.

    Com a instituição dessa modalidade, o bem oferecido em garantia deixa de fazer parte do patrimônio do devedor, ingressando precariamente no patrimônio do credor até que a obrigação seja cumprida integralmente.

    Por si só, tal situação já isenta o risco da preferência de eventuais créditos tributários e trabalhistas, bem como o efeito de eventual recuperação judicial em detrimento do devedor, uma vez que até que ocorra o pagamento integral da dívida, o imóvel não faz parte de seu patrimônio.

    Além disso, ao estabelecer a possibilidade de execução extrajudicial da garantia, junto ao Cartório de Registro de Imóveis competente, o procedimento para retomada do crédito tornou-se menos burocrático e oneroso.

    Por essas razões, a alienação fiduciária tornou-se atualmente a principal forma de garantia imobiliária utilizada pelo mercado nacional, uma vez que, por proporcionar maior segurança, menos burocracia e onerosidade em caso de inadimplência, permite a concessão de crédito a um custo médio de 8,70% e 12,41% ao ano, enquanto a média dos contratos garantidos por hipoteca varia entre 12 (doze) e 27 (vinte e sete) por cento ao ano.

    3. Insegurança Jurídica e suas Consequências na Determinação da Restituição de Excedentes em Caso de Leilões Negativos

    Conforme apresentado no tópico acima, fatores como o procedimento, o custo e o risco para eventual execução da garantia são os indicadores básicos para a precificação do crédito disponibilizado ao mercado.

    Podemos interpretar a regra básica do custo do crédito, objetivamente, da seguinte forma: o quanto menores forem os riscos, custos e tempo de recuperação dos valores, menores serão os juros disponíveis para a população em geral.

    No entanto, apesar da existência de legislação específica que rege a garantia fiduciária, o Poder Judiciário, utilizando os mais variados argumentos, vem produzindo julgamentos em direções contrárias ao que a lei estabelece, gerando a temida insegurança jurídica.

    Como será possível observar a seguir com a análise do caso objeto deste comentário, ainda que a lei preveja expressamente a exoneração do credor quanto à restituição de quaisquer valores ao devedor caso as duas ações exigidas por lei permaneçam infrutíferas, o Tribunal de Justiça de São Paulo, ao julgar a apelação cível nº 1017164-55.2022.8.26.05623, Argumentando que tal regra não era “equitativa”, decidiu-se pela não aplicação da lei, condenando a instituição financeira requerida ao desembolso de valores, situação imprevisível e imensurável no momento da precificação do crédito.

    No entanto, antes de entrarmos no assunto em si, valem as lições de Marcos Borges sobre a garantia fiduciária:

    “Na alienação fiduciária em garantia, o credor será o titular da propriedade solúvel de coisa móvel ou imóvel não fungível, que lhe tenha sido transferida pelo devedor, com o âmbito de garantia. O conceito de bem resolúvel, por sua vez, é extraído do artigo 1.361 caput, do Código Civil, no qual se afirma: “Considera-se fiduciário o bem resolúvel de coisa móvel não fungível que o devedor, com o escopo de garantia, transfere ao credor”.

    Portanto, quando a propriedade é resolvida pela implementação da condição ou pelo advento do termo, os direitos reais concedidos em sua pendência também são compreendidos para serem resolvidos, e o proprietário, em cujo favor a resolução é efetuada, pode reivindicar a coisa do poder de quem a possui ou detém.

    É, portanto, uma propriedade que vigora até que a condição seja implementada ou antes do advento de um determinado prazo. Na alienação fiduciária em garantia, por exemplo, o imóvel cedido ao credor fiduciário é resolvido quando há quitação da dívida pelo devedor fiduciário. O bem resolúvel também é extinto quando, por inadimplemento da obrigação, o bem é consolidado em nome do credor para fins de execução da garantia. (Borges, 2023)

    Considerando o desdobramento do bem (resolúvel/integral) em razão da garantia fiduciária, o mesmo ocorre com a posse do bem objeto de tal contrato, com o devedor exercendo a posse direta do bem, enquanto o credor permanece a posse indireta, situação que, segundo o jurista francês Pothier, também pode ser analisada a partir dos conceitos de domínios perfeitos e imperfeitos.

    A primeira é caracterizada pela aquisição da plenitude dos direitos de uso e gozo pelo adquirente (posse direta), enquanto a segunda está relacionada ao bem resolúvel existente em favor do da instituição credora (posse indireta). Se houver e persistir no estado de inadimplência, a lei prevê a possibilidade de execução extrajudicial da garantia, que deve ser realizada perante o Cartório de Registro de Imóveis em que o imóvel oferecido como garantia está registrado.

    Uma vez instaurado o processo de execução, o Oficial de Registro procederá à citação pessoal do devedor para que no prazo de 15 (quinze) dias ele possa quitar o saldo devedor, sob pena de consolidação da propriedade plena em favor do credor.

    Em caso de não pagamento do saldo dentro do prazo legal, o Oficial de Registro de Imóveis emitirá o certificado de caducidade, possibilitando a transferência da propriedade plena para o credor fiduciário, que por sua vez é obrigado a realizar dois leilões públicos visando a venda do bem e liquidação do saldo devedor.

    O primeiro leilão terá por base o valor de avaliação do imóvel estipulado no momento da contratação, enquanto o segundo deverá ocorrer pelo valor da dívida, acrescido das restantes despesas de execução, respeitando o valor mínimo de 50% do valor de avaliação do imóvel.

    Nesses dois leilões exigidos por lei, se houver venda do imóvel, o produto da venda será direcionado para quitar o saldo devedor, devendo eventual excedente ser devolvido ao ex-devedor.

    No entanto, se os leilões obrigatórios não forem bem-sucedidos, a lei prevê expressamente que o credor gozará da livre disponibilidade do bem, sem a obrigação de restituição de eventuais mais-valias.

    Tal dispositivo visa pôr fim à relação anteriormente existente entre as partes, evitando que o negócio jurídico se estenda por um período indefinido, uma vez que não é possível prever a data ou as condições em que o imóvel executado acabará por ser vendido.

    No entanto, analisando os termos do acórdão proferido no julgamento da apelação cível 1017164-55.2022.8.26.0562, verifica-se que o Tribunal de Justiça de São Paulo sequer considerou os termos da venda do imóvel realizada pela instituição financeira ré em momento posterior aos leilões obrigatórios, para apurar eventual excedente (o que ainda configuraria uma afronta à legislação vigente).

    De acordo com os termos da decisão proferida, o Banco foi condenado a reembolsar a diferença entre o valor do segundo leilão e o valor do saldo da dívida, vejamos:

    “Permaneceu indiscutível que a propriedade foi avaliada, para os fins do 2º. leilão, pelo valor de R$ 2.352.800,01. Assim, é o valor de R$ 2.352.800,01 que deve ser considerado como o preço do imóvel para fins de adjudicação, não havendo procedência do que foi alegado pelo apelante quanto ao valor pelo qual o imóvel foi posteriormente vendido a terceiro, em leilão posterior, ocorrido após sua efetiva adjudicação. Dito isso, resta verificar o valor atualizado da dívida de março/2022, que, segundo o recorrente, seria de R$ 2.203.371,44, o que, aliás, permaneceu incontroverso, uma vez que não foi especificamente impugnado pelos recorrentes no tribunal de segunda instância.”

    Vejamos o que consta do n.º 3 do artigo 26-A da Lei n.º 9514/97, responsável por estabelecer os parâmetros de fixação dos preços para o segundo leilão obrigatório:

    “Artigo 26-A. Os procedimentos de cobrança, purgação de moras, incorporação de bens fiduciários e leilão decorrentes de financiamento para aquisição ou construção de imóvel residencial do devedor, ressalvadas as operações do regime de consórcio a que se refere a Lei nº 11.795, de 8 de outubro de 2008, estão sujeitas às regras especiais estabelecidas neste artigo.

    (…)

    § 3º No segundo leilão, será aceito o maior lance ofertado desde que igual ou superior ao valor integral da dívida garantida pela alienação fiduciária mais antiga vigente sobre o imóvel, despesas, inclusive emolumentos cartoriais, prêmios de seguros, encargos legais, inclusive impostos, e contribuições condominiais. (Incluído pela Lei nº 14.711, de 2023)”

    Com a simples leitura da regra acima, é possível verificar que para o segundo leilão deve ser considerado o valor da dívida, somado às despesas de execução e eventuais dívidas existentes sobre o imóvel garantidor.

    Dito isso, quando analisamos a decisão proferida, há a mais absoluta incongruência de resultado, pois determina que a restituição em favor do devedor deve ser constituída subtraindo-se o valor estipulado para o segundo leilão (que deve observar o valor atualizado da dívida) e o valor atualizado da dívida, ou seja, liquidação incorreta da sentença o saldo final deve ser zero!

    Vale ressaltar que o presente resultado foi obtido em razão do descumprimento deliberado da norma específica sobre a matéria, baseando-se, nesse fato, na alegada falta de equidade do texto legal vigente, conforme trecho a seguir do acórdão:

    “Ou seja, em razão do disposto no § 5º do art. 27, da Lei nº 9514/97, acima transcrito, após a frustração do leilão do bem nos leilões designados, considerou-se extinta a dívida dos devedores fiduciários, ora recorrentes, ao credor fiduciário, ora recorrida. No entanto, os requerentes estão certos sobre a percepção de qualquer saldo credor remanescente, calculado entre o valor da dívida atualizado e o preço pelo qual o imóvel foi concedido. (…) “Não parece equitativo impor ao devedor fiduciário a perda de todo o valor pago, se o ativo for posteriormente concedido.”

    Sobre o julgamento por equidade, Tercio Sampaio Ferraz Jr.:

    “A solução de disputas por equidade é aquela que se obtém pela consideração harmoniosa das circunstâncias concretas, que podem resultar em um ajuste da norma à especificidade da situação para que a solução seja justa” (Ferraz Jr., 1994)

    No entanto, no Brasil, conforme estabelecido no parágrafo único do_bookmark3artigo 140 do Código de Processo Civil, esse tipo de julgamento só é permitido nos casos expressamente previstos na lei, o que não é o caso da presente situação.

    Entender o contrário significaria possibilitar o afastamento da legislação vigente em decorrência de fatores subjetivos que teriam maior relevância do que a própria lei, impossibilitando completamente a construção da segurança jurídica necessária ao desenvolvimento do país.

    Nesse sentido, é também o entendimento de José Severo Caballero, ex-ministro da Suprema Corte argentina:

    “Na era atual, o surgimento do Estado de Direito social e democrático, que defende a liberdade, a justiça, a equidade e outras aspirações morais e políticas como os valores mais elevados do sistema jurídico, não pode, na sociedade de massa, dispensar a lei como o único instrumento para alcançar a realização desses valores. No entanto, a segurança jurídica exige que, em termos de equidade, sejam tidas em conta no momento da criação legislativa, mas de forma subordinada no ato judicial em que só podem funcionar como moderadores ou como complementos na interpretação da lei”. (Caballero, 2008)

    Ainda, sobre a impossibilidade de um julgamento por equidade contra legem, temos a lição de Jorge A. Rojas:

    “Desde então, foi instituída uma tarefa por um tribunal (seja unipessoal ou colegiado), que deverá realizar uma determinada tarefa, muito específica por sinal, que nada mais é do que resolver o conflito que as partes submeteram à sua decisão, por meio de uma sentença, por meio da qual devem colocar em prática a vontade da lei. ou, em alguns casos, mitigando essa vontade de maneira equitativa, o que não significa que o façam contra legem, mas de acordo com a equidade, ou como também é comumente chamado, de acordo com seu melhor conhecimento e compreensão, ou com uma verdade e boa fé conhecidas, ou com qualquer uma daquelas fórmulas que, no mesmo sentido, visam marcar uma forma de ação do tribunal que não a sujeita exclusivamente à letra da lei, ao contrário, dá-lhe maior margem de manobra através de sua boa discrição”. (Rojas, 2008)

    Como transcrito acima, para o referido jurista, ao decidir um determinado caso, o juiz deve fazer cumprir a vontade da lei, e em alguns casos pode até mitigar equitativamente a aplicação da legislação, mas nunca produzindo um julgamento contra legem.

    Por fim, especificamente em relação à impossibilidade de utilização do julgamento por equidade no Brasil em hipóteses não previstas em lei, eis a lição de Fábio Ulhoa Coelho:

    “O julgamento por equidade, no direito brasileiro, só é permitido ao juiz nos casos delimitados por lei (CPC, art. 140, parágrafo único). Ou seja, exceto em algumas situações, o juiz só pode acrescentar aos fundamentos de sua sentença argumentos que busquem demonstrar que a lei está sendo aplicada. Por mais flexível que seja a norma jurídica (por meio de métodos e tipos de interpretação, identificação e integração de lacunas, superação de antinomias, etc.), o juiz deve ordinariamente argumentar que a está aplicando. Ele não deve basear sua decisão em argumentos que revelem ou sugiram que o direito positivo não está sendo aplicado, exceto nos casos em que a própria lei autoriza o julgamento por equidade. (Coelho, 2022)

    Prosseguindo com a análise da decisão em questão, verifica-se que o tribunal de julgamento também baseia sua decisão no fato de que é necessário interpretar a regra de acordo com a situação concreta, não sendo possível simplesmente aplicar a regra positiva, vejamos:

    “De fato, como bem ensina Maria Helena Diniz (Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, Interpretado, Saraiva, ed. 1994, pgs. 141/142), “o magistrado, em todos os momentos, ao aplicar uma regra ao caso sub judicie, interpreta-a, pesquisando seu significado. Isso ocorre porque a letra da norma permanece, mas seu significado se adapta às mudanças que a evolução e o progresso operam na vida social. Interpretar é, portanto, (…) extrair da norma tudo o que ela contém, revelando seu significado apropriado para a vida real”.

    A ilustre autora acrescenta que uma das funções da interpretação é “temperar o alcance do preceito normativo, para fazê-lo corresponder às necessidades reais e atuais de natureza social” (op.cit. – pág. 142).

    Além disso, é necessário trazer, por ser pertinente, uma lição de Cândido R. Dinamarco (A Instrumentalidade do Processo – São Paulo – 1986 – pp. 163 e 197), segundo a qual não se pode “pressupor o processo como um fim em si mesmo, sem questionar sua função perante o ordenamento jurídico substancial”, acrescentando que “um grande marco significativo foi a afirmação enérgica do processo como um instrumento ético e não meramente técnico”, resolução de conflitos de interesse. Dito isso, deve-se concordar que, na análise do objeto desta ação, não há como desconsiderar a possibilidade de se deparar com a existência de enriquecimento ilícito nos casos em que o valor da adjudicação do bem exceda o valor da dívida do devedor fiduciário.”

    De acordo com a lição da ilustre professora Maria Helena Diniz citada no trecho do julgamento acima, a interpretação das normas é essencial para que o texto legal se mantenha atualizado e adaptado às mudanças que a evolução e o progresso operam na vida social, o que não é de forma alguma discutido.

    No entanto, sobre o caso em questão, não havia sido demonstrado, ou mesmo citado, qual fator social acabou mudando para permitir a não aplicação literal da regra.

    O argumento de alegado enriquecimento ilícito do credor em razão da permissão legal, considerando a obrigação de restituição de valores em caso de leilões negativos exonerados, já produzia os mesmos efeitos desde o momento de sua entrada em vigor até os dias atuais, não havendo, portanto, nenhum fator de evolução social que justifique a não aplicação da lei.

    A decisão também se baseia no argumento da necessária interpretação da vontade do legislador, vejamos:

    “Como ressalta o C. STJ, durante o julgamento do REsp nº 249.026/PR, do qual foi relator o ministro José Delgado (DJ 26.06.2000), “não se pode se apegar rigidamente à letra fria da lei, mas sim considerá-la com temperança, por vontade do legislador”.

    Portanto, e considerando não apenas as “necessidades reais e atuais de natureza social”, mas também a verdadeira razão de ser do processo (“um instrumento ético e não meramente técnico”, para a solução de conflitos de interesse), o aprofundamento do estudo e da reflexão sobre o tema e, consequentemente, a mudança de entendimento, é rigoroso.”

    Apesar da citação sobre a necessidade de interpretar a intenção do legislador no momento da aplicação da lei, quando analisamos o texto legal, chegamos a uma conclusão oposta.

    O texto da lei, ao exonerar o credor da obrigação de restituir valores caso os leilões não sejam bem-sucedidos, é objetivo e claro e não contém indícios de subjetividade capazes de justificar qualquer interpretação.

    Portanto, sob o manto ilusório da necessária interpretação normativa, o que se vê é a interferência direta do Poder Judiciário em matéria legislativa, deixando caracterizado o ativismo judicial.

    Nesse sentido, a obra de Georges Abboud diz:

    “Ativismo é qualquer decisão judicial que se baseia em convicções pessoais, no senso de justiça do intérprete em detrimento da legalidade vigente, legalidade aqui entendida como a legitimidade do sistema jurídico, e não como mero positivismo estrito ou subsunção do fato ao texto normativo.

    Em suma, o ativismo, em termos brasileiros, deve ser considerado o pronunciamento judicial que substitui a legalidade vigente por convicções. Daí a nossa crítica à discricionariedade judicial, pois é por meio dela que, atualmente, se legitima o uso das convicções pessoais do juiz em detrimento de fontes normativas.” (Abboud, 2014)

    Corroborando a falta de intenção do legislador quanto à eventual restituição de valores em favor do devedor após a realização dos leilões malsucedidos, cabe destacar que muito recentemente a lei responsável pela regulamentação da garantia fiduciária de imóveis sofreu uma reforma significativa em razão da promulgação do Marco Jurídico das Garantias, previsto na Lei nº 14.711 promulgada em 30 de outubro de 2023.

    No entanto, ainda que a nova legislação promova reformas, inclusive no texto do § 5º do artigo 27 da Lei 9514/97, a previsão de isenção da responsabilidade pela restituição de valores em caso de leilões negativos permaneceu completamente inalterada.

    Confirma-se, assim, plenamente a total ausência de intenção por parte do legislador de estipular um direito em contrário.

    4. Conclusão

    Analisadas essas questões, segundo José Luiz Ragazzi, é fundamental considerar que a disponibilidade de créditos no mercado vai muito além dos atores envolvidos em qualquer ação judicial, produzindo impactos em toda a comunidade na medida em que as relações de confiança e previsibilidade esperadas pelo mercado, em geral, ficam comprometidas em decorrência da insegurança jurídica produzida por uma decisão que não aplica a legislação vigente.

    Portanto, considerando a realidade brasileira, traduzida em um déficit habitacional de

    5,8 milhões de moradias encontradas no último levantamento realizado pelo Ministério do Desenvolvimento Regional, temos que o estímulo à insegurança relacionada ao principal tipo de garantia de crédito imobiliário não contribuiu para a provisão de um direito equitativo à comunidade, uma vez que, ao enfrentar prejuízos decorrentes de decisões judiciais contrárias ao texto da lei. O custo do crédito certamente será impactado, afetando principalmente a parcela mais pobre da população (Brasil).

    Conflitos de Interesses

    Os autores declaram não haver conflitos de interesse em relação à publicação deste artigo.

    Previous Next
    Close
    Test Caption
    Test Description goes like this