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    Casamento civil homoafetivo: uma questão de direitos humanos

    Reconhecimento da união homoafetiva protege os direitos à igualdade, não discriminação, liberdade e dignidade

    Autor: Paulo Iotti

    Foi amplamente noticiada a tramitação e aprovação, pela Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família, da Câmara dos Deputados, de Projeto de Lei que, contrariando a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal sobre a proteção constitucional das uniões homoafetivas, visa proibir o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo (PL 5.167/09). Agora, ele será analisado pela Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial e, depois, pela Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania da Câmara. Caso nela aprovado, terá tramitação similar perante o Senado Federal antes de ser remetido à Presidência da República para sanção ou veto.

    Em 5 de maio de 2011, no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4277, por unanimidade, o STF afirmou que a união homoafetiva não é proibida pelo texto constitucional e que a interpretação sistemática do art. 226, §3º, da CF/88 com os princípios da igualdade, da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da segurança jurídica demanda o reconhecimento da união pública, contínua e duradoura entre pessoas do mesmo sexo, em “Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e consequências da união estável heteroafetiva” (uma destas consequências é a possibilidade de conversão da união estável em casamento civil). Decisão esta ratificada, também por unanimidade, em 2019 pelo STF, na ADI 5971 (Pleno, rel. min. Alexandre de Moraes, DJe 26.09.2019).

    Na feliz síntese do atual decano da Suprema Corte, ministro Gilmar Mendes, o fato de a Constituição proteger a união estável entre o homem e a mulher não significa negativa de proteção à união civil ou estável entre pessoas do mesmo sexo. Isso está dogmaticamente correto, pois lição básica de interpretação do Direito ensina que o fato de o texto normativo citar um fato (no caso, a união entre o homem e a mulher) e nada falar sobre outro (no caso, a união entre pessoas do mesmo sexo) não significa “proibição implícita”, mas lacuna normativa, colmatável por interpretação extensiva ou analogia. Por isso, nos dias 20 e 25.10.2011, o STJ reconheceu o direito ao casamento civil homoafetivo afirmando que “Os arts. 1.514, 1.521, 1.523, 1.535 e 1.565, todos do Código Civil de 2002, não vedam expressamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo, e não há como se enxergar uma vedação implícita ao casamento homoafetivo sem afronta a caros princípios constitucionais, como o da igualdade, o da não discriminação, o da dignidade da pessoa humana e os do pluralismo e livre planejamento familiar” (REsp 1.183.378/RS, 4ª T., Rel. Min. Luís Felipe Salomão, DJe 01.02.2011). E, concretizando a força de lei decorrente do efeito vinculante e da eficácia erga omnes da decisão do STF de controle abstrato e concentrado de constitucionalidade (art. 102, §2º, da CF/88), foi aprovada a Resolução 175/2013 pelo Conselho Nacional de Justiça, que obriga Cartórios de Registro Civil a celebrarem o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo.

    Como se vê, o PL 5.167/09 é inconstitucional, por discriminatório a casais do mesmo sexo, pois lhes nega direitos vinculados ao status de família conjugal, oriundo no Brasil pelos regimes jurídicos do casamento civil e da união estável. O Direito das Famílias e Sucessões em geral é regido por normas de ordem pública, que se aplicam independente da vontade das pessoas, donde equivocada a Justificativa do Projeto quando afirma que casais homoafetivos poderiam garantir tais direitos a si por contratos ou testamentos. Por outro lado, não há igualdade real quando para garanti-la integrantes de uma minoria
    estigmatizada precisam contratar advogado (a) e realizar complexa estratégia de contratos, testamentos e procurações para garantir direitos automaticamente concedidos a integrantes da maioria pela lei.

    Falamos aqui de direitos relacionados a situações existenciais dramáticas, cuja negativa historicamente destruiu a vida de pessoas não-heterossexuais. Afinal, se o companheiro homoafetivo não é considerado integrante da “família” daquele com quem se relaciona, se ele ficar internado, o outro não poderá sequer visita-lo e muito menos tomar decisões sobre seu tratamento em caso de inconsciência (etc.), como ocorre com casais heteroafetivos. Da mesma forma, se companheira homoafetiva falece e a outra não é considerada de sua “família”, a “família de sangue” herda os bens que estavam em nome da outra e esta fica a ver navios (a lei garante meação e herança automáticas a cônjuges ou companheiros), o que, muitas vezes na história, gerou a expulsão da casa (em nome da pessoa falecida) em que sempre viveu sua relação homoafetiva daquela (a) que conviveu a vida inteira com a pessoa falecida, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. E isso, muitas vezes, por “família de sangue” que desprezou a pessoa falecida, por conta de sua orientação sexual homoafetiva. Outros exemplos são a ausência de direito a inclusão como dependente em planos de saúde, ausência de desconto concedido a cônjuges ou companheiros(as) no Imposto de Renda e ausência de proteções legais (de ordem pública) que a lei garante a casais casados ou em união estável, entre muitos outros.

    Como se vê, o não-reconhecimento do status jurídico-familiar das uniões homoafetivas gera efeitos potencialmente destrutivos à vida de casais do mesmo sexo, algo que não se justifica à luz dos princípios da igualdade e da não-discriminação. Isso porque embora eles admitam diferenciações jurídicas, é pacífico que exigem que sejam decorrências lógico-racionais do critério diferenciador erigido, sendo inconstitucionais diferenciações arbitrárias, ou seja, injustificáveis por critérios de razão pública, que são aquelas potencialmente passíveis de aceitação por pessoas racionais e de boa-fé, por não se pautarem em dogmas metafísicos ou quaisquer preconceitos. E não há motivo lógicoracional que justifique a negativa de direitos concedidos às uniões heteroafetivas às homoafetivas pela mera homogeneidade de sexos destas.

    O argumento de que a proteção constitucional à família estaria vinculada à proteção da capacidade procriativa não se sustenta, pois se o fosse (e não é), casais heteroafetivos estéreis não são impedidos de se casar ou de ter sua união estável reconhecida como entidade familiar (e seria um critério inconstitucional, por estigmatização e discriminação a pessoas estéreis).

    A proteção de crianças também não constitui fundamento aplicável, pois diversos estudos já comprovaram que crianças criadas por casais homoafetivos têm seu desenvolvimento pessoal e sua socialização absolutamente equivalentes àquelas criadas por casais heteroafetivos, donde a homogeneidade ou diversidade de sexos do casal que as cria não é um fator pertinente. Duas decisões do STJ que admitiram a adoção conjunta por casais homoafetivos citaram estudos tais (REsp 1.281.093/SP, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 04.02.2013, e REsp 889.852/RS, 4ª T., Rel. Min. Luís Felipe Salomão, DJe 10.08.2010). E estudos tais também demonstraram que não há maior incidência de pessoas que se descobrem LGBTI+ no futuro apenas por terem sido criadas por um casal homoafetivo, uma preocupação que já revela preconceito, pois nenhum problema há na pessoa ser não-heterossexual ou não-cisgênera (transgênera). Assim, como decidido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, não se pode negar a parentalidade a alguém apenas por estereótipos contrários à sua orientação sexual, donde o legítimo fim estatal de proteção de crianças, com absoluta prioridade, não pode se pautar nisso (caso Atala Riffo e filhas v. Chile, 2012).

    Nem se avente criar uma “união civil” paralela para casais homoafetivos, porque além de geralmente não garantir igualdade de direitos, negar o acesso ao casamento civil a casais do mesmo sexo viola o princípio da dignidade humana, pois passa a sinistra mensagem de que casais homoafetivos não seriam dignos para merecê-lo, como decidido pela Suprema Corte de Ontário/CAN (Halpern v. Canada, 2002). Implica ainda, segundo a Corte Interamericana (OC 24/17, 2ª parte), segregacionismo fruto da noção racista de “separados, mas iguais”, que tanto assolou a convivência de pessoas negras e brancas no
    passado, criando um estereótipo da heteronormatividade para o casamento civil, destinado às pessoas consideradas “normais”, relegando a união civil paralela a quem ta lei considera “anormais”. Estamos falando de casamento civil: nunca se demandou obrigar igrejas a realizarem casamentos religiosos homoafetivos, donde esse é um falso problema.

    Esse direito a igual respeito e consideração perante as leis não pode ser considerado juridicamente ofensivo a ninguém, lembrando que, em juízo de concordância prática entre direitos fundamentais, o STF afirmou que até mesmo o reconhecimento da homotransfobia como crime de racismo não proíbe pregações que afirmem o suposto caráter “pecaminoso” das relações homoafetivas e mesmo das identidades LGBTI+ em geral, desde que não configurem discurso de ódio, enquanto incitação à discriminação, à segregação e/ou à intolerância (ADO 26 e MI 4733, Tese, item 2, parte final). Em um Estado Laico, fundamentações religiosas não podem pautar as políticas públicas e as leis, pois
    implicam em relações de dependência ou aliança do Estado com tais religiões (art. 19, I, da CF/88) e o próprio direito fundamental à liberdade religiosa foi criado para proteger minorias religiosas contra a discriminação a suas crenças, não para que a maioria religiosa possa impor seus dogmas a quem não os compartilha.

    Como se vê, o reconhecimento do direito ao casamento civil homoafetivo é uma decorrência dos direitos humanos à igualdade, não-discriminação, liberdade e proteção da dignidade intrínseca de casais homoafetivos. Até porque, na feliz afirmação do Min. Ayres Britto, Relator do citado julgamento de 2011 do STF, os heteroafetivos nada perdem quando os homoafetivos ganham: não há nenhum prejuízo à sociedade como um todo nem a ninguém individualmente por tal reconhecimento. E, como decidido pela Suprema Corte dos EUA em famoso precedente (Department of Agriculture v. Moreno, 1973), se a
    garantia constitucional de igual proteção das leis significa alguma coisa, ela deve, no mínimo, impor que o simples desejo de prejudicar um grupo politicamente impopular não constitua um legítimo fim estatal apto a justificar discriminações jurídicas, até porque, como ela decidiu em 2015 ao reconhecer o direito ao casamento civil igualitário, casais homoafetivos têm igual dignidade relativamente aos heteroafetivos (Obergefell v. Hodges). Discordâncias morais ou religiosas a essa premissa civil laica não podem gerar
    discriminações jurídicas, visto que considerações morais que não se vinculem a efetivos bens jurídicos também não configuram um legítimo fim estatal para negar direitos a casais do mesmo sexo (Lawrence v. Texas, 2003), pois o preconceito (“animus”) não se configura como um legítimo fim estatal apto a justificar discriminações jurídicas (Romer v. Evans, 1996). Essa é a questão.

    Por fim, na improvável hipótese deste Projeto se transformar em lei, é praticamente certo que será suspenso liminarmente e declarado inconstitucional no julgamento definitivo pelo STF, ante sua consolidada jurisprudência em defesa do reconhecimento das uniões homoafetivas como famílias conjugais, segundo as mesmas regras e consequências das uniões heteroafetivas (ADPF 132/ADI 4277, de 2011, e ADI 5971, de 2019). Algo reforçado por decisão menos conhecida, que afirmou a inconstitucionalidade formal e material de decreto legislativo que sustava regulamentação de lei local antidiscriminação por orientação sexual, porque ela, longe de “prejudicar” a proteção das famílias (como, equivocadamente, alegado), enseja efetiva proteção das famílias, no caso, das famílias homoafetivas (ADI 5740 e 5744, de 2020).

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