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    Considerações acerca das distintas fases de execução extrajudicial referente aos contratos regidos pela Lei 9.514/97 com as alterações trazidas pela Lei 13.465/2017 e seus reflexos em ações possessórias

    05 de Maio de 2021, por Guilherme Andrade Zauli, Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – Campus Poços de Caldas. LLM em Direito Civil pela Universidade de São Paulo – Campus Ribeirão Preto. Advogado e coordenador imobiliário no escritório Tortoro Madureira e Ragazzi Sociedade de Advogados.

    CONSIDERATIONS CONCERNING THE DIFFERENT EXTRA-JUDICIAL IMPLEMENTATION PHASES REGARDING THE CONTRACTS GOVERNED BY LAW 9.514 / 97 WITH THE AMENDMENTS MADE BY LAW 13.465 / 2017 AND ITS REFLECTIONS ON  REPOSSESSION PROCEEDINGS (SUITS)

    Área do Direito: Civil; Processual; Imobiliário.

    Resumo: O presente artigo é fruto de pesquisa empírica resultante da análise de precedentes jurisprudenciais produzidos pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, como também pelo Superior Tribunal de Justiça. Busca-se abordar relevantes questões acerca do procedimento extrajudicial de execução da garantia contratual, principalmente no que tange à distinção das fases de consolidação da propriedade e realização dos leilões extrajudiciais. Após a conceituação e análise acerca das distintas fases, abordar-se-á o reflexo de eventual inconsistência em posterior pleito possessório para retomada da posse em favor da instituição credora.

    Palavras-chave: Alienação Fiduciária – Imóvel – Distinção de Fases – Consolidação da propriedade – Realização de Leilões – Nulidade – Possessória.

    Abstract: This article is the result of empirical research resulting from the analysis of several jurisprudential precedents produced by the The High Court of Justice of the State of São Paulo, as well as by the Superior Court of Justice. It is intended to address relevant issues regarding the extrajudicial procedure for the execution of the contractual warranty, especially referring to the distinction between the phases of property consolidation and the conduct of out-of-court auctions. After the conceptualization and analysis of each distinct phase, the reflection of eventual inconsistency will be approached in a later possession plea for the resumption of the possession in favor of the creditor institution.

    Keywords: Fiduciary Alienation – Property – Distinction of Phases – Property Consolidation – Auctions – Nullity – Possessory.

    Sumário: 1. Introdução – 2. Conceito – 3. Da distinção entre as fases dos procedimentos extrajudiciais de execução da garantia fiduciária – 3.1. Da consolidação da propriedade – 3.2. Da realização dos leilões exigidos por lei – 4. Da formação de entendimento jurisprudencial contrário à norma vigente – 4.1. Da necessidade de comprovação de dano acerca da ausência de notificação sobre as datas de realização dos leilões– 5. Conclusão – 6. Bibliografia.

    1. Introdução

    Em um momento em que o país busca a retomada do crescimento econômico, se faz pertinente a análise acerca dos procedimentos inerentes ao Sistema de Financiamento Imobiliário criado pela lei 9.514/97 no qual institui a alienação fiduciária de bens imóveis.

    Justamente por possibilitar a oferta do próprio imóvel objeto do contrato de compra e venda como garantia dos valores financiados, a modalidade sob análise se tornou a principal fonte de fomento privado ao setor imobiliário, uma vez que representa modalidade de crédito de baixo custo¹ (juros próximos a 1% ao mês), considerando a existência de garantia real.

    Ocorre que, conforme será demonstrado adiante, um sério fator vem assolando a garantia necessária para manutenção do baixo custo desta linha de crédito, qual seja, a existência de decisões judiciais conflitantes e destoantes da legislação vigente, o que acarreta na temida insegurança jurídica. Em que pese ser cristalina a relação existente entre a segurança jurídica e a prática de baixas taxas de juros, vale mencionar a fala do Ministro Luis Fux durante sua

    participação no Seminário Reavaliação do Risco Brasil, promovido pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), na sede da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan) em Novembro de 2015: “O judiciário pode reduzir o Risco Brasil transmitindo ao investidor estrangeiro segurança jurídica, que vai conduzir também ao alijamento do risco econômico”².

    2. Conceito

    Como o próprio nome sugere, o conceito de alienação fiduciária se traduz na aquisição de determinado bem que servirá como fidúcia, ou seja, garantia, da obrigação assumida perante a instituição responsável pela concessão do crédito.

    Tamanha é a importância do instituto da alienação fiduciária que seu conceito está duplamente previsto no ordenamento jurídico nacional: artigo 1.361 do Código Civil e artigo 22 da lei 9.514/97.

    Artigo 1.361, Código Civil:

    “Art. 1.361. Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor. ”

    Artigo 22 da lei 9.514/07:

    “Art. 22. A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel. ”

    Em ambos conceitos, o legislador preconiza a transferência resolúvel da propriedade como garantia da obrigação assumida, a qual se tornará plena apenas com o pagamento integral da avença.

    Neste ponto surge o primeiro ponto de destaque, qual seja, a ausência de propriedade plena do devedor até que haja o adimplemento integral da dívida, motivo pelo qual eventuais bens gravados fiduciariamente não integram o patrimônio do devedor para fins herança ou responsabilidade de obrigações diversas, o que há é apenas a expectativa de direitos sobre o imóvel.

    De acordo com o professor Fábio Ulhoa Coelho, o negócio fiduciário pode ser conceituado da seguinte forma:

    “Por esse contrato, cujas raízes se encontram no direito romano (Restiffe Neto, 1975:1), o credor (fiduciário) se torna titular da propriedade resolúvel da coisa e seu possuidor indireto, enquanto o devedor (fiduciante) é investido na condição de possuidor direto e depositário (CC, arts. 1.361, § 2º, e 1.363). Cumprida a obrigação que esse tem perante aquele, opera-se a resolução da propriedade: o sujeito que era devedor passa a ser o proprietário pleno e único possuidor da coisa, e o que era credor deixa de titularizar qualquer direito real sobre ela. Não cumprida a obrigação, porém, tem o credor instrumentos ágeis e eficazes para ver satisfeito seu crédito. Sendo o proprietário e possuidor indireto do bem objeto da alienação fiduciária em garantia, o credor pode, nas condições da lei, obter a consolidação da propriedade, vendê-lo e pagar-se com o produto da venda. ”³

    Portanto, suprida a parte conceitual acerca do instituto da alienação fiduciária, passaremos à análise dos diversos procedimentos para execução extrajudicial da garantia nos casos de inadimplência por parte do devedor.

    3. Da distinção entre as fases dos procedimentos extrajudiciais de execução da garantia fiduciária

    Corriqueiramente, ao julgar demandas possessória que visam a retomada do imóvel dado em garantia do contrato de financiamento, mesmo após a devida consolidação da propriedade em favor da instituição credora, são produzidas jurisprudências impossibilitando tal retomada diante de suposta falha no procedimento de notificação acerca das datas de leilões.

    Tais decisões figuram como objeto principal do presente trabalho a fim de demonstrar a distinção das fases de execução extrajudicial (consolidação da propriedade e realização dos leilões) e os alcances dos consequentes efeitos em casos de inobservância dos requisitos legais.

    3.1. Da consolidação da propriedade

    Estabelece a lei 9.514/97, em seu artigo 26, que vencida e não paga a dívida o devedor será constituído em mora e não havendo a quitação do débito, consolidar-se-á a propriedade em favor do credor fiduciário.

    Vejamos:

    “Art. 26. Lei 9.514/97. Vencida e não paga, no todo ou em parte, a dívida e constituído em mora o fiduciante, consolidar-se-á, nos termos deste artigo, a propriedade do imóvel em nome do fiduciário.”

    O termo “consolidação da propriedade” decorre do fato de que a partir do registro da alienação fiduciária na matrícula do imóvel, o proprietário legal do bem passa a ser o credor fiduciário.

    Ocorre que tal propriedade não se dá de forma plena, há o que a doutrina caracteriza como propriedade resolúvel, ou seja, aquela que para se tornar plena, encontra-se condicionada a determinado fato.

    Nos casos de alienação fiduciária, o fato condicionante refere-se à quitação dos valores do crédito anteriormente concedido.

    Havendo a quitação dos valores, resolve-se a propriedade em favor do antigo devedor.

    Porém, na hipótese de inadimplemento das obrigações assumidas, haverá a resolução da propriedade em favor do credor fiduciário por meio do registro de consolidação da propriedade em seu nome.

    Por ensejar a obtenção da propriedade plena acerca do imóvel dado em garantia, a consolidação da propriedade concretizar-se-á apenas se observados determinados requisitos formais previstos em lei.

    Tal requisito encontra-se previsto no artigo 26, § 1º da lei 9.514/97 e consiste, basicamente, na intimação pessoal do devedor por meio do Oficial de Registro de Imóveis (sendo admitida a realização de intimação via Cartório de Títulos e Documentos), para que no prazo 15 (quinze) dias  promova a quitação da prestação vencida, como também, daquelas que se vencerem até a data do pagamento, os juros convencionais, as penalidades e os demais encargos contratuais, os encargos legais, inclusive tributos, as contribuições condominiais imputáveis ao imóvel, além das despesas de cobrança e de intimação.

    Não havendo a purgação tempestiva da mora, após o decurso de trinta dias a contar do fim do prazo para pagamento do débito, deverá ser averbada a consolidação da propriedade em favor do credor fiduciário.

    Necessário esclarecer que a partir deste ponto (averbação da consolidação da propriedade) a propriedade anteriormente resolúvel em nome da instituição credora, torna-se plena, consequentemente tornando-se precária a posse exercida pelo antigo devedor.

    A fim de corroborar com tal argumento, o artigo 37-A da lei 9.514/97 estabelece que a partir da consolidação da propriedade até a efetiva imissão na posse por parte do credor fiduciário, será devido o pagamento mensal de taxa de ocupação pelo devedor:

    “Art. 37-A. Lei 9.514/97. O devedor fiduciante pagará ao credor fiduciário, ou a quem vier a sucedê-lo, a título de taxa de ocupação do imóvel, por mês ou fração, valor correspondente a 1% (um por cento) do valor a que se refere o inciso VI ou o parágrafo único do art. 24 desta Lei, computado e exigível desde a data da consolidação da propriedade fiduciária no patrimônio do credor fiduciante até a data em que este, ou seus sucessores, vier a ser imitido na posse do imóvel.”

    Tornando-se precária a posse exercida sobre o bem a partir da consolidação da propriedade, neste exato momento surge o direito de ingresso da competente ação possessória.

    Observando tal fato, o legislador não só garantiu o direito de propositura da competente ação possessória, como também, assegurou a reintegração liminar da posse em seu favor no prazo de 60 (sessenta) dias:

    “Art. 30. Lei 9.514/97. É assegurada ao fiduciário, seu cessionário ou sucessores, inclusive o adquirente do imóvel por força do público leilão de que tratam os §§ 1° e 2° do art. 27, a reintegração na posse do imóvel, que será concedida liminarmente, para desocupação em sessenta dias, desde que comprovada, na forma do disposto no art. 26, a consolidação da propriedade em seu nome.”

    Portanto, inconteste o fato de que o requisito legal para o deferimento da reintegração de posse em favor do credor fiduciário, reside apenas na existência da regular averbação acerca da consolidação de propriedade em seu nome.

    Observando a norma legal, neste exato sentido é o entendimento do ínclito Desembargador Sá Duarte, relator da 33ª Câmara de Direito Privado do Estado de São Paulo:

    “REINTEGRAÇÃO DE POSSE – Alienação fiduciária de imóvel Liminar deferida – Decisão que se reputa acertada – Direito à posse que decorre da consolidação da propriedade do imóvel em mãos do credor fiduciário, fato que antecede os leilões apontados como irregulares pela ausência de intimação pessoal dos devedores fiduciantes – Agravo de instrumento não provido”

    3.2. Da realização dos leilões exigidos por lei

    Prosseguindo com a fase executória, após consolidada a propriedade em nome do credor fiduciário, a lei 9.514/97 exige a realização de dois leilões obrigatórios para tentativa de alienação do imóvel.

    “Art. 27. Uma vez consolidada a propriedade em seu nome, o fiduciário, no prazo de trinta dias, contados da data do registro de que trata o § 7º do artigo anterior, promoverá público leilão para a alienação do imóvel.”

    Tal medida consiste em uma tentativa do legislador em viabilizar a quitação dos valores em aberto referentes ao contrato anteriormente entabulado.

    Desta forma, a lei exige a realização de duas hastas públicas obrigatórias para tentativa de venda do bem.

    Na primeira tentativa, o imóvel será ofertado pelo valor estipulado em cláusula específica no momento de celebração do contrato.

    Já na segunda tentativa, o valor será aquele correspondente ao total do débito existente, incluindo as despesas, os prêmios de seguro, os encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais.

    “§ 1º Se no primeiro leilão público o maior lance oferecido for inferior ao valor do imóvel, estipulado na forma do inciso VI e do parágrafo único do art. 24 desta Lei, será realizado o segundo leilão nos quinze dias seguintes.     (Redação dada pela Lei nº 13.465, de 2017)

    § 2º No segundo leilão, será aceito o maior lance oferecido, desde que igual ou superior ao valor da dívida, das despesas, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais.”

    Por força do § 4º, artigo 27 da lei 9.514/97, ocorrendo a venda do imóvel em qualquer dos leilões supracitados, eventual valor que sobejar a dívida existente será integralmente repassado ao antigo devedor.

    Tal restituição garante ao devedor eventuais indenizações por benfeitorias ou valores que tenha dispendido com o imóvel, como também impede a ocorrência de enriquecimento ilícito por parte da instituição credora.

    “Artigo 27, § 4º. Lei 9.514/97. Nos cinco dias que se seguirem à venda do imóvel no leilão, o credor entregará ao devedor a importância que sobejar, considerando-se nela compreendido o valor da indenização de benfeitorias, depois de deduzidos os valores da dívida e das despesas e encargos de que tratam os §§ 2º e 3º, fato esse que importará em recíproca quitação, não se aplicando o disposto na parte final do art. 516 do Código Civil.”

    Porém, na hipótese de não haver licitantes nos leilões obrigatórios, ou o valor ofertado não for suficiente para quitar os débitos existentes, por força do § 5º do artigo supracitado, considerar-se-á extinta a dívida anteriormente existente e o credor fiduciário restará exonerado da obrigação de restituir quaisquer valores ao antigo devedor.

    “Artigo 27, § 5º. Lei 9.514/97 Se, no segundo leilão, o maior lance oferecido não for igual ou superior ao valor referido no § 2º, considerar-se-á extinta a dívida e exonerado o credor da obrigação de que trata o § 4º.”

    Note-se que esta segunda fase do procedimento de execução extrajudicial da garantia, em nada mais alcança ou discute a legitimidade da propriedade já consolidada em nome do credor fiduciário, apenas visa garantir ao devedor a restituição de saldo que eventualmente sobejar os débitos do contrato.

    Justamente por ensejar eventual restituição de valores ao devedor fiduciante, a lei 13.465/2017 cuidou de normatizar a exigência de intimação pessoal do mesmo a acerca das datas, horários e local de realização dos leilões obrigatórios, garantindo-lhe, inclusive, o direito de preferência em eventual aquisição do imóvel.

    Vejamos:

    “Artigo 27, § 2º-A.  Para os fins do disposto nos §§ 1o e 2o deste artigo, as datas, horários e locais dos leilões serão comunicados ao devedor mediante correspondência dirigida aos endereços constantes do contrato, inclusive ao endereço eletrônico.    (Incluído pela Lei nº 13.465, de 2017)

    § 2º-B.  Após a averbação da consolidação da propriedade fiduciária no patrimônio do credor fiduciário e até a data da realização do segundo leilão, é assegurado ao devedor fiduciante o direito de preferência para adquirir o imóvel por preço correspondente ao valor da dívida, somado aos encargos e despesas de que trata o § 2o deste artigo, aos valores correspondentes ao imposto sobre transmissão inter vivos e ao laudêmio, se for o caso, pagos para efeito de consolidação da propriedade fiduciária no patrimônio do credor fiduciário, e às despesas inerentes ao procedimento de cobrança e leilão, incumbindo, também, ao devedor fiduciante o pagamento dos encargos tributários e despesas exigíveis para a nova aquisição do imóvel, de que trata este parágrafo, inclusive custas e emolumentos.    (Incluído pela Lei nº 13.465, de 2017)”

    Corroborando com a argumentação de que o procedimento de realização dos leilões em nada interfere na propriedade plena inerente ao credor fiduciário, o legislador utiliza os termos “direito de preferência para adquirir o imóvel por preço correspondente…”.

    Nestes extados termos é o entendimento do ínclito Desembargador Luis Fernando Nishi, relator da 32ª Câmara de Direito Privado do Estado de São Paulo:

    “Agravo de instrumento – Alienação fiduciária em garantia – Bem imóvel – Decisão que suspendeu os leilões extrajudiciais em decorrência da necessidade de intimação com ciência do ato designado e da possibilidade de purgação da mora até a assinatura do auto de arrematação do imóvel – Alterações na Lei nº 9.514/1997, promovidas pela Lei nº 13.465/2017 – Limite para purgação da mora fixado no § 2º-B do art. 27 da Lei nº 9.514/1997 – Na vigência da Lei nº 13.465/2017, após a consolidação da propriedade, resta ao devedor apenas direito de preferência para adquirir o imóvel por preço correspondente ao valor da divida, somados aos encargos e despesas expressamente previstos – Agravado, ademais, que demonstrou ciência dos leilões antes mesmo de sua realização – Suspensão do procedimento de execução extrajudicial indevida – RECURSO PROVIDO.”

    Ou seja, com a consolidação da propriedade e mesmo antes da realização dos leilões, todas as questões relativas à propriedade do imóvel encontram-se superadas.

    4. Da formação de entendimento jurisprudencial contrário à norma vigente

    Conforme exposto nos tópicos anteriores, em que pese a distinção das fases e seus respectivos efeitos na execução extrajudicial da garantia, os Tribunais de Justiça Estaduais vêm proferindo decisões absolutamente contrárias às normas vigentes.

    Com base em uma interpretação equivocada da jurisprudência sedimentada pelo Superior Tribunal de Justiça, diversas demandas possessórias pautadas na regular consolidação da propriedade em favor da instituição credora, têm sido julgadas improcedentes por conta de eventual ausência de notificação dos devedores acerca das datas de realização dos leilões obrigatórios.

    Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

    “APELAÇÃO – Alienação fiduciária – Reintegração de posse – Credor fiduciário que objetiva a retomada da posse do imóvel objeto do contrato – Consolidação da posse e propriedade do imóvel litigioso em favor do credor fiduciário, bem como a tentativa frustrada de praceamento extrajudicial do bem – Sentença de procedência – Hipótese em que os devedores não foram intimados pessoalmente quanto à data, horário e local do leilão extrajudicial – A observância das normas que regulam a consolidação da propriedade ao credor fiduciário não dispensa a intimação pessoal do devedor para informá-lo da designação dos leilões – Obrigatoriedade que encerra fundamento no art. 39, II, da Lei n. 9.514/97 cc. art. 36 do Decreto-Lei n. 70/66 – Garantia conferida ao devedor para purgação da mora – Precedentes do Superior Tribunal de Justiça e desta Corte – Alteração legislativa nesse sentido, promovida pela Lei n. 13.465/17, que incluiu o § 2º-A ao art. 27 da Lei n. 9.514/97 – Procedência da ação afastada – Sentença reformada – RECURSO DOS RÉUS PROVIDO.”

    Verifica-se que o julgado acima versa especificamente acerca de ação de reintegração de posse movida pelo credor fiduciário após a regular consolidação da propriedade em seu nome.

    Porém, em que pese o mérito da demanda versar única e exclusivamente acerca da posse, no caso em comento, o Tribunal em questão se ampara em decisão proferida em ação com mérito absolutamente diverso, no qual o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar ação anulatória de leilões, reconhece a necessidade de intimação pessoal do devedor acerca do local, data e horário da realização das hastas públicas, vejamos:

    “Logo, o silêncio do legislador sobre a obrigatoriedade da intimação pessoal para a realização dos leilões está longe de caracterizar omissão eloquente no bojo da Lei n. 9.514/97. E é por isso, aliás, que se revela irrelevante o fato de o credor e o proprietário fiduciário serem um só na sistemática da referida lei. Afinal, como dito, o escopo precípuo da formalidade é possibilitar a purgação da mora até a consumação do processo executivo.

    A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça situa-se nessa mesma corrente de pensamento:

    AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. CIVILE PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO ANULATÓRIA DE LEILÃO EXTRAJUDICIAL. LEI Nº 9.514/97. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE COISA IMÓVEL. NOTIFICAÇÃO PESSOAL DO DEVEDOR FIDUCIANTE. NECESSIDADE. PRECEDENTE ESPECÍFICO. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO. 1. ‘No âmbito do Decreto-Lei nº 70/66, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça há muito se encontra consolidada no sentido da necessidade de intimação pessoal do devedor acerca da data da realização do leilão extrajudicial, entendimento que se aplica aos contratos regidos pela Lei nº 9.514/97’ (REsp 1447687/DF, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 21/08/2014, DJe 08/09/2014). 2. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO” (AgRg no REsp 1367704/RS, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 04.08.2015)”

    Note-se que o julgamento do caso sob análise se deu em 13/12/2018, ou seja, momento posterior ao advento da lei 13.465/2017, na qual altera o artigo 39, II da lei 9.514/97 que possibilitava a aplicação subsidiária do Decreto-Lei nº 70, de 21 de novembro de 1966.

    A aplicação subsidiária do referido Decreto-Lei viabilizava o entendimento jurisprudencial no sentido de ser possível a purgação da mora até o momento da arrematação do imóvel.

    Com a inovação trazida pela lei 13.465/2017, tal possibilidade se restringiu apenas aos contratos de garantia hipotecária.

    Assim, ao contrário do entendimento produzido pelo Egrégio Tribunal de Justiça Estadual, o momento para purgação da mora se encerra com o registro da consolidação da propriedade em favor do credor, e não “até a consumação do processo executivo”.

    Para demonstrar que a interpretação diversa dos requisitos legais não ocorre de forma isolada, segue julgado diverso no mesmo sentido:

    “APELAÇÃO ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – REINTEGRAÇÃO DE POSSE – Ajuizamento da ação pela instituição financeira visando a retomada da posse do imóvel objeto do contrato, após arrematação pela credora em leilão extrajudicial Hipótese em que os devedores não foram intimados pessoalmente quanto à data, horário e local do leilão extrajudicial Intimação que ocorreu por edital Nulidade dos atos praticados pela instituição financeira Orientação jurisprudencial a respeito, inclusive do Colendo Superior Tribunal de Justiça – Alteração legislativa nesse sentido, promovida pela Lei n. 13.465/17, que incluiu o § 2-A ao art. 27 da Lei n.º 9.514/97 – Procedência da ação afastada – Recurso dos réus provido”

    Novamente, em sede de ação possessória que tem como requisito específico a regular consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário, houve a interpretação equivocada a acerca das distintas fases de execução previstas na legislação específica.

    Ao delimitar o período no qual é possível proceder com a purgação do mora, o legislador estipula de forma cristalina o momento para discussão acerca de eventuais nulidades que viabilizariam o exercício legítimo da posse pelo devedor fiduciante.

    Ou seja, não havendo nulidades com relação ao procedimento de intimação para purgação da mora, torna-se legítima e regular a consolidação da propriedade averbada em favor da instituição credora.

    Portanto, negar o direito à reintegração de posse caracterizaria permissivo judicial para manutenção de esbulho, haja vista que a parte ocupante não exerce mais qualquer direito de propriedade sobre bem.

    Inclusive, nestes exatos termos, é o entendimento sedimentado pelo Superior Tribunal de Justiça:

    “SFI – SISTEMA FINANCEIRO IMOBILIÁRIO. LEI 9.514/97. ALIENAÇAO FIDUCIÁRIA DE BEM IMÓVEL. INADIMPLEMENTO DO FIDUCIANTE. CONSOLIDAÇAO DO IMÓVEL NA PROPRIEDADE DO FIDUCIÁRIO. LEILAO EXTRAJUDICIAL. SUSPENSAO. IRREGULARIDADE NA INTIMAÇAO. PRETENSÃO, DO CREDOR, A OBTER A REINTEGRAÇAO DA POSSE DO IMÓVEL ANTERIORMENTE AO LEILAO DISCIPLINADO PELO ART. 27 DA LEI 9.514/97. POSSIBILIDADE. INTERPRETAÇAO SISTEMÁTICA DA LEI.

    1. Os dispositivos da Lei 9.514/97, notadamente seus arts. 26, 27, 30 e 37-A, comportam dupla interpretação: é possível dizer, por um lado, que o direito do credor fiduciário à reintegração da posse do imóvel alienado decorre automaticamente da consolidação de sua propriedade sobre o bem nas hipóteses de inadimplemento; ou é possível afirmar que referido direito possessório somente nasce a partir da realização dos leilões a que se refere o art. 27 da Lei 9.514/97.

    2. A interpretação sistemática de uma Lei exige que se busque, não apenas em sua arquitetura interna, mas no sentido jurídico dos institutos que regula, o modelo adequado para sua aplicação. Se a posse do imóvel, pelo devedor fiduciário, é derivada de um contrato firmado com o credor fiduciante, a resolução do contrato no qual ela encontra fundamento torna-a ilegítima, sendo possível qualificar com o esbulho sua permanência no imóvel.

    3. A consolidação da propriedade do bem no nome do credor fiduciante confere-lhe o direito à posse do imóvel. Negá-lo implicaria autorizar que o devedor fiduciário permaneça em bem que não lhe pertence, sem pagamento de contraprestação, na medida em que a Lei 9.514/97 estabelece, em seu art. 37-A, o pagamento de taxa de ocupação apenas depois da realização dos leilões extrajudiciais. Se os leilões são suspensos, como ocorreu na hipótese dos autos, a lacuna legislativa não pode implicar a imposição, ao credor fiduciante, de um prejuízo a que não deu causa.

    4. Recurso especial não provido. ”¹º

    Analisando o precedente colacionado acima, resta inequivocamente comprovado que a consolidação da propriedade em favor do credor fiduciário é o único requisito necessário para o deferimento da proteção possessória, podendo, inclusive, ser concedida antes mesmo da realização dos leilões obrigatórios por lei.

    Se é possível a o deferimento da reintegração de posse antes mesmo da realização dos leilões, não há meios de se concluir que eventual nulidade no que tange a notificação acerca dos mesmos seria capaz de obstar o direito possessória da parte credora.

    Portanto, tal posicionamento corrobora com a necessidade de distinção e absoluta independência, entre as fases de execução no procedimento extrajudicial.

    4.1. Da necessidade de comprovação de dano acerca da ausência de notificação sobre as datas de realização dos leilões

    Demonstrada a ausência de prejudicialidade com relação a consolidação da propriedade em favor do credor fiduciário, questiona-se qual seria o efeito prático de eventual nulidade de intimação sobre as datas dos leilões, tendo em vista a vedação legal trazida pelo parágrafo único do artigo 30 da lei 9.514/97.

    “Art. 30. É assegurada ao fiduciário, seu cessionário ou sucessores, inclusive o adquirente do imóvel por força do público leilão de que tratam os §§ 1° e 2° do art. 27, a reintegração na posse do imóvel, que será concedida liminarmente, para desocupação em sessenta dias, desde que comprovada, na forma do disposto no art. 26, a consolidação da propriedade em seu nome.

    Parágrafo único.  Nas operações de financiamento imobiliário, inclusive nas operações do Programa Minha Casa, Minha Vida, instituído pela Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009, com recursos advindos da integralização de cotas no Fundo de Arrendamento Residencial (FAR), uma vez averbada a consolidação da propriedade fiduciária, as ações judiciais que tenham por objeto controvérsias sobre as estipulações contratuais ou os requisitos procedimentais de cobrança e leilão, excetuada a exigência de notificação do devedor fiduciante, serão resolvidas em perdas e danos e não obstarão a reintegração de posse de que trata este artigo.    (Incluído pela Lei nº 13.465, de 2017)”

    Mais uma vez, reforçando a tese de que após a averbação de consolidação se encerra a discussão sobre a plenitude da propriedade transferida ao credor, o legislador estipula que eventuais ações judiciais que tenham por objeto controvérsias sobre as estipulações contratuais ou os requisitos procedimentais serão resolvidas em perdas e danos, com exceção as demandas que versarem sobre exigência de notificação do devedor fiduciante.

    Analisando o resultado produzido pela regular notificação do devedor acerca das datas de realização dos leilões, conclui-se que tal medida garante apenas a expectativa de direito para recompra do imóvel.

    Ao garantir o direito de preferência na aquisição do imóvel, a legislação assegura ao devedor a prioridade de recompra do bem, desde que se observe as exatas condições de eventual arrematação em hasta pública.

    Sob pena de caracterizar manobra de cunho estritamente protelatório, ao arguir tal nulidade, caberia à parte proceder com a imediata consignação dos valores de praceamento do imóvel.

    Não comprovada a suficiência de fundos para tanto, restaria comprovada a inexistência de qualquer prejuízo ao devedor.

    Neste sentido, inclusive, o Tribunal de Justiça Bandeirante produziu recente entendimento:

    “Apelação – alienação fiduciária – imóvel – anulatória de PROCEDIMENTO EXTRAJUDICIAL – notificação para purgação da mora por edital – REGULAR CONSTITUIÇÃO EM MORA – AUSÊNCIA DE INTIMAÇÃO PESSOAL DOS DEVEDORES ACERCA DOS LEILÕES EXTRAJUDICIAIS – – DEVEDORES QUE TINHAM CIÊNCIA DA DÍVIDA E QUE, EM MOMENTO ALGUM, MANIFESTARAM INTENÇÃO REAL DE QUITAR O DÉBITO – AUSÊNCIA DE PREJUÍZO – SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA REFORMADA – RECURSO PROVIDO. ”¹¹

    Assim, exatamente por depender de comprovação de prejuízo, o legislador sabiamente excluiu a hipótese de resolução em perdas e danos, bastando ao devedor demonstrar, por meio de consignação integral do valor de arrematação, a efetiva capacidade econômica de exercício do direito de preferência a fim de que o Poder Judiciário determine a nulidade de eventual venda em leilão a terceiros.

    5. Conclusão

    Considerando a toda a argumentação exposta acima, como também o relevante papel social no que tange ao financiamento privado para aquisição de bens imóveis, refletindo na viabilização da moradia à grande parte da população brasileira, o tema abordado merece urgente atenção por parte da jurisprudência nacional, tendo em vista que ao produzir decisões contrárias aos pontos fixados em lei, fomenta-se a insegurança jurídica responsável por encarecer o custo do crédito colocado à disposição da população em geral.

    Portanto, imperiosa a necessidade de reconhecimento acerca da distinção e independência das fases de execução extrajudicial da garantia prevista nos contratos regidos pela lei 9.514/97, como também os consequentes efeitos de eventual nulidade no que tange a notificação do devedor sobre a data, local e horário dos leilões exigidos por lei.

    6. Bibliografia

    AGENCIA BRASIL, Segurança jurídica atrai investimentos e reduz Risco Brasil, diz Fux. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2015-11/seguranca-juridica-atrai-investimentos-e-reduz-risco-brasil-diz-fux>. Acesso em 11/03/2019.

    BANCO CENTRAL DO BRASIL, Pessoa Física – Financiamento imobiliário com taxas de mercado. Disponível em: <https://www.bcb.gov.br/estatisticas/reporttxjuros/?path=conteudo%2Ftxcred%2FReports%2FTaxasCredito-Consolidadas-porTaxasAnuais-ModalidadeMensal.rdl&nome=Pessoa%20F%C3%ADsica%20-%20Financiamento%20imobili%C3%A1rio%20com%20taxas%20de%20mercado&parametros=tipopessoa:1;modalidade:903;encargo:101&exibeparametros=false&exibe_paginacao=false>. Acesso em 11/03/2019.

    BRASIL. Lei 9514 de 20 de novembro de 1997. Dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário, institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências.

    BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil.

    BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 1.155.716 – DF – 3ª Turma – Rel. Min. Nancy Andrighi – DJ 22.03.2012.

    BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Agravo de Instrumento 2162265-22.2017.8.26.0000; Relator (a): Sá Duarte; Órgão Julgador: 33ª Câmara de Direito Privado; Foro de Matão – 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 30/10/2017; Data de Registro: 31/10/2017.

    BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Agravo de Instrumento 2055592-68.2018.8.26.0000; Relator (a): Luis Fernando Nishi; Órgão Julgador: 32ª Câmara de Direito Privado; Foro de Taboão da Serra – 1ª V.CÍVEL; Data do Julgamento: 24/01/2019; Data de Registro: 24/01/2019.

    BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível 1013946-56.2017.8.26.0477; Relator (a): Jonize Sacchi de Oliveira; Órgão Julgador: 24ª Câmara de Direito Privado; Foro de Praia Grande – 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 13/12/2018; Data de Registro: 14/12/2018.

    BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação1001057-77.2017.8.26.0604; Relator (a): Claudio Hamilton; Órgão Julgador: 25ª Câmara de Direito Privado; Foro de Sumaré – 2ª Vara Cível; Data doJulgamento:21/06/2018; Data de Registro: 21/06/2018.

    BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível 1002522-41.2016.8.26.0642; Relator (a): Cesar Luiz de Almeida; Órgão Julgador: 28ª Câmara de Direito Privado; Foro de Ubatuba – 1ª Vara; Data do Julgamento: 13/03/2019; Data de Registro: 13/03/2019.

    COELHO, Fábio Ulhoa – Curso de direito civil, volume 4 : direito das coisas, direito autoral / Fábio Ulhoa Coelho. — 4. ed. — São Paulo : Saraiva, 2012.

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