Justiça usa localização de celular para analisar direito a horas extras
Caio Medici Madureira, sócio do Tortoro, Madureira & Ragazzi Advogados
A Justiça do Trabalho começou a aceitar como prova o registro da localização do aparelho celular do trabalhador (geolocalização) para decidir se existe direito ao recebimento de horas extras. Há decisões favoráveis no Tribunal Regional do Trabalho (TRT) de Santa Catarina e na primeira instância dos Estados de Pernambuco, Ceará, Santa Catarina e Mato Grosso, segundo levantamento realizado pelo Ferraz de Camargo e Matsunaga Advogados (FCAM).
As decisões seguem tendência da Justiça do Trabalho de adotar cada vez mais o uso de provas digitais – medida defendida pela ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Maria Cristina Peduzzi. No ano passado, a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho (Enamat) abordou em curso a questão.
Ainda assim o tema é polêmico e alguns juízes entendem que o pedido de geolocalização pode invadir a intimidade e privacidade do funcionário. Para eles, existem outros meios de comprovar a realização ou não de horas extras.
Os pedidos nos processos, em geral, partem de instituições financeiras. Solicitam a geolocalização, em substituição a testemunhas, para afastar o pagamento de horas extras. Na maioria dos casos, os juízes têm autorizado a medida, segundo a advogada do FCAM que coordenou o levantamento, Silvia Fidalgo Lira.
Recentemente, o TRT de Santa Catarina admitiu o uso da geolocalização do celular de uma funcionária de um banco, que alegou fazer horas extras com frequência. A maioria dos desembargadores da Seção Especializada 2 entendeu que o pedido não viola a intimidade da trabalhadora.
A decisão foi dada em recurso da trabalhadora contra decisão de primeira instância. A juíza Tatiane Sampaio, da 2ª Vara do Trabalho de Joinville, havia determinado que a pesquisa fosse feita por amostragem, indicando a localização do celular apenas em dias úteis e em 20% do período contratual. Para ela, “a prova digital é mais pertinente e eficaz do que a prova testemunhal”, e os parâmetros da pesquisa evitariam a violação à privacidade da empregada.
No TRT, três dos dez desembargadores entenderam que a pesquisa só poderia ser autorizada pela Justiça, se não houver outros meios de prova, como documentos e depoimentos de testemunhas. A maioria, contudo, seguiu o voto do relator, desembargador Gracio Petrone.
Em seu voto, afirma que a legislação não estabelece hierarquia entre os tipos de prova. “Se o novo meio probatório, digital, fornece dados mais consistentes e confiáveis do que a prova testemunhal, não há porque sua produção ser relegada a um segundo momento processual, devendo, de outro modo, preceder à prova oral”, diz.
Ainda segundo Petrone, a medida não ofende a garantia constitucional de inviolabilidade das comunicações ou a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (nº 13.709/18), desde que os dados coletados estejam em sigilo, reservada sua análise às partes envolvidas (processo nº 0000955-41.2021.5.12.000).
Para Caio Madureira, sócio do Tortoro, Madureira & Ragazzi, que defende o banco, o pedido da geolocalização encerra o conflito travado na prova testemunhal, muitas vezes com versões contraditórias, distantes da realidade dos fatos. A decisão, acrescenta, quebra o paradigma de anos no Poder Judiciário, que aceitava basicamente provas testemunhais. “Hoje temos a tecnologia a nosso favor, que traz a frieza dos dados e a eficácia para buscar a verdade.”
No Ceará, o juiz Tiago Brasil Pita, da 1ª Vara de Maracanaú, também decidiu pela geolocalização em um processo em que havia divergência nos depoimentos de testemunhas. Ele entendeu que a prova vem “somar ao acervo probatório processual e conferir ao juízo visão analítica e com maior precisão acerca dos deslocamentos da parte autora no seu dia a dia laboral, medida que se mostra proporcional e relevante para o deslinde da controvérsia quanto à jornada de trabalho” (processo nº 0001307-35.2021.5.07.0033).
O juiz Mauro Roberto Vaz Curvo, da Vara do Trabalho de Primavera do Leste (MT), também aceitou a geolocalização, a pedido de uma empresa de financiamento de créditos. Ele determinou, no início de março, que Vivo, Facebook, Google Brasil, Twitter Brasil e Apple forneçam, “no prazo de 15 dias, os dados de geolocalização da reclamante e os horários em que indica estar trabalhando em horas extras para extração de dados de geolocalização.”
Essas decisões, afirma a advogada Silvia Fidalgo Lira, são acertadas porque nenhum direito ou garantia constitucional é absoluto e devem coexistir de forma harmoniosa, prevalecendo o interesse social em cada caso. “Apesar de a Constituição proteger a intimidade e a privacidade, também prevê o contraditório e a ampla defesa, que também são direitos fundamentais”, diz.
Segundo ela, as provas digitais podem e devem ser adotadas para tentar chegar à verdade real. “Especialmente, na Justiça do Trabalho, por ser mais eficaz que o depoimento de testemunhas, que muitas vezes são imprecisos e podem ter um pouco de subjetivismo das partes”, afirma. Ela lembra que o tratamento de dados pessoais, para fins processuais, é permitido pela LGPD.
Nem sempre, porém, as decisões têm sido favoráveis aos pedidos de geolocalização. A juíza substituta Ivana Meller Santana, da 48ª Vara do Trabalho em São Paulo, por exemplo, entendeu que não cabe a violação dos dados eletrônicos do empregado salvo, em último caso, por ordem judicial para fins de investigação criminal ou instrução processual penal. Para ela, “verifica-se a total desproporção entre a quebra do sigilo e o fim buscado” (processo nº 1000888-88.2021.5.02.0048).
De acordo com a decisão, “configuraria invasão de privacidade inadmissível”. A juíza ainda ressalta no texto que, no caso, com a adoção do home office, em consequência da pandemia da covid-19, “a geolocalização em nada serviria, pois estando o autor em casa na maior parte do dia, pelo menos, a geolocalização não demonstraria se ele estava trabalhando ou não.”
O caso envolve um banco. Para ela, a instituição financeira teria outras formas de comprovar se o funcionário estava no local ou não, por imagens das câmeras de segurança ou por relatórios de acessos aos sistemas.
A juíza ainda cita decisão do TRT de Santa Catarina que cassou liminar de primeira instância por entender que “ainda que autorize o ordenamento jurídico a realização de prova digital de geolocalização, por atingir a esfera da vida privada das pessoas, cabe ao juízo sopesar a sua real necessidade frente aos demais meios de prova disponibilizados” (processo nº 0000658-34.2021.5.12.0000).