“No, sin mis hijos”: o espanhol que enfrentou a Sharia e influenciou a criação da lei de família para não muçulmanos nos Emirados Árabes Unidos”
Revista IBDFAM Família e Sucessões, v. 51 (maio/junho) – Belo Horizonte: IBDFAM, 2022
Por Eliza Cerutti e Cassio S. Namur, sócio do Tortoro, Madureira & Ragazzi Advogados
O CASO DE BORJA BRAÑANOVA
Borja Brañanova realizou o feito de se tornar o primeiro pai a obter a guarda compartilhada dos filhos em um país árabe. Não bastasse, seu caso influenciou a criação de uma lei de família para não muçulmanos pelos Emirados Árabes Unidos, a primeira desta natureza no mundo.
Espanhol, engenheiro de minas, alto executivo de uma multinacional alemã, Borja se mudou para os Emirados Árabes há cerca de 20 anos, onde se casou com uma sul-africana, com quem teve dois filhos. Em 2016, quando seu filho contava com apenas 2 anos e sua filha era recém-nascida, a esposa de Borja propôs uma ação de divórcio perante um Tribunal islâmico. Todo o processo iniciou-se de acordo com a Sharia, lei islâmica, que amparava pedidos como moradia, pensão, valores estimados das viagens para a África do Sul, onde residia a família de origem da mulher, somando montante estimado em 10 milhões de dólares. O que mais preocupou Borja, porém, foi o fato de que, de acordo com a Sharia e pela idade que os filhos detinham à época, a guarda seria atribuída exclusivamente à mãe, sem regulamentação da convivência com o pai, que assumiria a função de provedor.
O primeiro desafio enfrentado por Borja foi afastar a Sharia como lei aplicável. Por sorte, encontrou na própria lei de conflitos islâmica a regra segundo a qual, para solucionar conflitos multiconectados envolvendo o estatuto pessoal, poderia ser invocada a lei nacional do marido, no caso, a lei espanhola. E assim o fez.
Contudo, o segundo desafio foi fazer a prova do Direito espanhol. Para demonstrar ao Tribunal islâmico o que dispunha a lei espanhola para situações de divórcio, alimentos e guarda dos filhos, fez-se a tradução e legalização de toda a parte do Código Civil espanhol para o idioma árabe. Além disso, embora a guarda compartilhada fosse considerada o formato preferencial na Espanha desde o ano de 2013, de acordo com a jurisprudência do Tribunal Supremo, o tema não havia sido objeto de alteração legislativa e, portanto, não estando o Código Civil espanhol atualizado de acordo com esta orientação, precisou reunir uma gama de documentos complementares para demonstrar esse entendimento.
O terceiro desafio, uma vez determinada a lei aplicável e feita a prova do seu conteúdo, foi convencer os juízes islâmicos, habituados a aplicar o Direito local, sabidamente marcado por forte influência religiosa e cultural a, efetivamente, decidirem de acordo com o que orientava a lei espanhola. Tanto assim, que a sentença foi proferida de acordo com a lei islâmica, imputando a Borja condenação financeira elevada e, como ele temia, restringindo-lhe o exercício da guarda dos filhos e da própria convivência com a prole. Nas palavras de Borja, “foi um clássico veredito da Sharia”.
A decisão foi revertida em apelação, após ter sido reforçada a demonstração de que o Direito espanhol, por meio de parecer elaborado por dois ministros aposentados do Tribunal Supremo espanhol e uma especialista em Direito Internacional de Família. O julgamento da apelação foi proferido em novembro de 2018 e com ele, pela primeira vez na história dos Emirados Árabes Unidos, conferia-se a ambos os pais a guarda compartilhada dos filhos.
Apesar de ter sido um caso relativamente célere se comparado aos padrões brasileiros (cerca de dois anos), foi resultado de um árduo trabalho envolvendo uma qualificada equipe formada por profissionais de três países (Emirados Árabes, Espanha e África do Sul).
O caso e o feito de Borja Brañanova ganharam visibilidade de tal modo na Espanha, que a Confederación por el Mejor Interés de la Infancia de España (CEMIN) propôs a candidatura dele e de toda a equipe de advogados que o assessorou ao Premio Princesa de Asturias de la Concordia. A pressão midiática, arrematada com a candidatura a um importante prêmio na Espanha, teve muito impacto nos Emirados Árabes, dado o seu interesse estratégico de ser reconhecido internacionalmente como um país aberto à mudança, modernidade e, sobretudo, abertura à diferença cultural.
AS SOLUÇÕES DO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO
No limiar deste novo milênio, a comunicação global é um dos traços característicos da sociedade, a provocar o aumento das ocorrências de famílias transnacionais e, por consequência, demandar a aplicação dos recursos do Direito Internacional privado. Neste contexto, como bem apreendido por Nadia de Araujo:
Vive-se a dicotomia entre os direitos individuais e as necessidades específicas do direito de família, que demanda uma proteção especial aos interesses do grupo familiar. Enquanto os primeiros têm por característica seu caráter universal, a família, ao contrário, está muito vinculada à cultura, às tradições e à religião de cada sociedade.
O Direito Internacional privado tem a importante função de manejo dos conflitos, sob o ponto de vista das diferenças culturais. Já dizia Erik Jayme, que ele “encontra sua razão de ser na diversidade de leis dos Estados e na necessidade de encontrar soluções justas na comunidade internacional”.
Pelo método clássico de Direito Internacional privado (método conflitual), quando se trata de relações de natureza privada, ou seja, relativas ao estatuto pessoal, aos direitos de família, às relações contratuais ou à responsabilidade civil, conectadas com mais de um sistema jurídico, necessário, por vezes, lançar mão dos denominados “conflito de jurisdições” e ao “conflito de leis” para solução de demandas. Cada país contém regras que dão os critérios da competência internacional, indicando qual é a conexão necessária com o ordenamento jurídico para que os tribunais sejam exclusiva ou concorrentemente competentes. Da mesma forma, cada ordenamento estabelece os elementos de conexão, domicílio, nacionalidade, lugar de celebração, lugar de cumprimento etc., que indicarão o direito material a ser aplicado, se o interno ou o estrangeiro.
Além disso, a complexidade de um caso de divórcio internacional decorre de outras questões que estão no campo das diferenças culturais, entre elas, o fato de o divórcio ser fruto de uma delicada evolução histórica, própria de cada país e de cada cultura; de que não se trata apenas de admitir o divórcio, mas de como se chega a ele e quais suas consequências. As diferenças entre os distintos direitos estatais ao regular a dissolução do matrimônio são muito expressivas, afora as suscetibilidades que dizem respeito aos conflitos culturais, como bem explicado por Alfonso-Luis Calvo Caravaca e Javier Carrrascosa Gonzales:
Tras los ‘conflictos de leyes’ en materia de crisis matrimoniales se perciben profundos ‘conflictos de civilizaciones’. En efecto, se aprecia un fuerte enfrentamiento entre diferentes y apuestas maneras de contemplar y regular las relaciones sociales. Ese conflicto de civilizaciones es difícil de resolver con el método tradicional del DIPr, basado en la selección de ‘una Ley aplicable’ a la crisis matrimonia. Explicación: cuando se aplica una ley estatal y no otra, entonces una civilización triunfa sobre otra, un modelo de familia triunfa sobre otro.
A situação ganha complexidade quando se considera o número de casamentos mistos, entre cônjuges de nacionalidades diferentes e, ainda, os deslocados, havidos entre cônjuges de mesma nacionalidade, mas que residem em países diferentes. Prova-o o fato de que, já em 2006, 20% dos divórcios na União Europeia eram multiconectados.
Na medida em que essas relações alcançam um país islâmico, aumentam as probabilidades de que situações de natureza privada sejam levadas aos tribunais locais e, então, mesmo que o Direito Internacional privado conduza à aplicação de um direito estrangeiro. E não se pode negar que há uma tendência que estes apliquem a lei islâmica, já que essa é a extensão de sua competência. Foi o que aconteceu no caso de Borja, pelo menos, até a sentença, como anteriormente visto.
Sob o ponto de vista do método clássico de Direito Internacional privado, a lei dos Emirados Árabes Unidos disciplina que o país detém competência para ações relacionadas ao estatuto pessoal de residentes estrangeiros e prevê a possibilidade de que, nestes casos, se invoque a aplicação da lei estrangeira, especificamente, a lei de nacionalidade do marido. Mesmo assim, se a lei do país de origem das partes não abranger um aspecto do processo de divórcio, os tribunais têm poder discricionário para aplicar suas leis internas.
Todos estes elementos estiveram presentes no caso vivenciado por Borja Brañanova e, enfim, superados todos os desafios, ele conseguiu que a solução para o seu caso fosse orientado pela aplicação da lei espanhola. Obteve a guarda compartilhada dos filhos e, com isso, alcançou a tutela do superior interesse das crianças no que diz respeito à igualdade parental e ao direito à convivência familiar.
Por outro lado, o caso materializou uma tendência do Direito Internacional privado, que consiste em superar o método conflitual clássico com a criação de recursos substanciais que respondam de forma mais direta e uniforme. Assim, no lugar de valer-se das regras de conflito para determinação da lei aplicável e do pesado ônus de fazer prova do Direito estrangeiro, no ano de 2021 foi criada uma lei de direito material para regular as situações familiares aplicável a não muçulmanos, bem como de um Tribunal especial para julgar tais casos, tendo como idiomas oficiais o árabe e o inglês.
A CRIAÇÃO DA LEI DE FAMÍLIA PARA NÃO MUÇULMANOS NOS EMIRADOS ÁRABES UNIDOS
Os Emirados Árabes Unidos se caracterizam como um Estado confessional, ou seja, não laico. O Islamismo é a religião oficial e a Sharia, a lei islâmica, é a base do sistema de Justiça. É, assim, um direito fundamentalmente baseado em uma mensagem divina, capaz de governar e regular o comportamento humano e as relações sociais porque os homens que a ele se submetem prestam força a essa mensagem, porque há convicção individual e comunitária ou, ainda, porque tal mensagem é adotada por aqueles que detêm o poder.
Nesse sentido, pode-se afirmar que a lei islâmica é, em princípio, imutável, pois teria emanado da mensagem de Deus, porquanto todas as leis existentes provieram de Alláh, reveladas aos homens por meio de Maomé. Dessa forma, o sistema legal islâmico não pode aceitar o histórico foco do estudo da lei como uma função de mudança nas condições de vida numa determinada sociedade. Ao contrário: a lei de Alláh foi dada ao homem uma vez e para sempre, é a sociedade que deve adaptar-se ao mandamento em vez de criar suas próprias regras como uma constate resposta às mudanças que as dificuldades da vida impõem.
Seja como for, as prescrições, regras e mandamentos de origem sagrada interferem na vida pública e privada, organizando as interações sociais, assim considerados o estatuto pessoal dos indivíduos, as relações familiares, comerciais e econômicas.
Os Emirados Árabes Unidos, porém, em virtude de toda a sua história recente e da opção política e estratégica de desenvolvimento voltada à abertura global, com o objetivo de se tornar uma das maiores economias do Oriente Médio e do mundo, viu-se compelido a ampliar suas fronteiras culturais em nome da competitividade global para se tornar um dos destinos mais atraentes para talentos e habilidades. Desta realidade sobressai o impressionante dado estatístico: entre os 11 milhões de habitantes dos Emirados Árabes Unidos, apenas 11% são locais, todos os demais são estrangeiros.
O caso de Borja Brañanova direcionou os holofotes para esta realidade e a criação da primeira lei civil que rege os assuntos familiares não muçulmanos foi uma maneira de garantir a estrangeiros e não muçulmanos o direito de estarem sujeitos a uma lei reconhecida internacionalmente que lhes seja familiar em termos de cultura, costumes e língua, bem como, para alcançarem e protegerem os melhores interesses dos filhos, particularmente, em caso de separação dos pais, de acordo com as melhores práticas internacionais.
Além dos aspectos materiais da lei, que serão a seguir abordados, esse movimento também ensejou a criação do primeiro Tribunal dedicado aos assuntos das famílias não muçulmanas, no qual todos os procedimentos serão bilíngues, em árabe e inglês, para facilitar a compreensão dos procedimentos judiciais por estrangeiros e melhorar a transparência judicial.
A Lei de Família para não muçulmanos se destaca por ser a primeira do mundo com a característica de criar um regime especial para estrangeiros em determinado país. Em vigor desde novembro de 2021, propõe-se a regular o casamento civil, divórcio, guarda conjunta de filhos, sucessão e atribuição de paternidade.
Seu primeiro capítulo trata do casamento. De acordo com a lei islâmica, o casamento é regilioso e só pode se dar entre muçulmanos ou quando o noivo é muçulmano. Além disso, exige-se o consentimento do tutor da mulher. A nova lei introduz o conceito de casamento civil de estrangeiros, sem exigir o consentimento de terceiros, bastanto a vontade manifestada pelos nubentes.
O segundo capítulo trata do divórcio e seus desdobramentos financeiros e partrimoniais. De acordo com a lei islâmica, o divórcio pressupõe a comprovação da ocorrência de danos físicos e, ainda, que o casal passe, previamente, por um procedimento de tentativa de reconciliação. A nova lei assegura o divórcio aos não muçulmanos, seja ele requerido pelo marido ou pela mulher, sem a necessidade de atribuição de dano ou culpa de um deles sendo, ainda, dispensada da prévia tentativa de reconciliação. Em outras palavras, o divórcio na lei aplicável a não muçulmanos não está condicionado a uma causa, prazo ou condição. A lei também define os procedimentos de divórcio para não muçulmanos, os direitos dos cônjuges após o divórcio e a discricionariedade do juiz na avaliação dos direitos patrimoniais da esposa com base em vários critérios, como o número de anos de casamento, a idade da esposa, a situação econômica de cada um dos cônjuges e outras considerações que o juiz leve em consideração para determinar os direitos financeiros da esposa.
O terceiro capítulo versa sobre a guarda dos filhos após o divórcio. A guarda no sistema islâmico dava preferência à mãe. A lei em pauta dá lugar ao conceito de guarda compartilhada no âmbito da lei para não muçulmanos, de forma a salvaguardar a coesão da família e para preservar a saúde psicológica dos filhos.
O quarto capítulo trata das questões sucessórias, do registro de testamentos para não muçulmanos e do direito do estrangeiro de lavrar um testamento, destinando todos os seus bens a quem desejar.
Enfim, o quinto capítulo da lei regulamenta a comprovação de paternidade para estrangeiros não muçulmanos, prevendo que a comprovação da paternidade do filho recém-nascido seja baseada no casamento ou no reconhecimento da paternidade.
A lei, segundo os líderes dos Emirados Árabes Unidos, “reflete a liderança legislativa de Abu Dhabi e o status global que alcançou”; não sendo a primeira vez que o país reformou suas leis diante da mudança dos tempos. Em 2020, os Emirados Árabes Unidos reformaram as leis islâmicas pessoais para descriminalizar as relações sexuais pré-matrimoniais entre casais, afrouxar as restrições ao consumo de álcool e criminalizar a prática de crimes de honra.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como dizia Nietzsche, quem tem um porquê enfrenta qualquer como.
O caso de Borja Brañanova poderia ter recebido o mesmo desfecho de tantos outros que, cotidianamente, nos frustram como seres humanos e como operadores do Direito. Casos nos quais nem mesmo a melhor técnica, ética ou ideal de justiça conseguem conduzir a uma solução que se possa considerar acertada, porque o maior adversário, por vezes, é o rigor nas posições e convicções de quem oferece as respostas.
O que fez toda a diferença, neste caso, foi a existência de um porquê. Este porquê foi determinante para que um divórcio com disputa sobre guarda e patrimônio se transformasse em uma causa. Não a causa individual e privada de Borja, mas uma causa que emanava dramas coletivos dos 89% da população estrangeira dos Emirados Árabes Unidos.
Causa esta, em prol da igualdade parental e da primazia do superior interesse das crianças, consagrado princípio internacional contido na Declaração de Princípios da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 20/11/1989. Aliás, nunca é demais lembrar que o direito à convivência familiar é de extrema importância para a formação da sua saudável personalidade como futuros adultos.
A propósito, Pietro Perlingieri nos ensina, ao tratar do “pátrio poder” e do interesse do menor:
Essa intervenção assume cada vez mais o papel de garantia em relação ao não correto exercício do ofício (“pátrio poder”) e ao próprio capricho e arbítrio do menor. O exercício do pátrio poder se concentra exclusivamente no interesse do menor. Interesse existencial, mais que patrimonial, que deve ser individuado, em relação às circunstâncias concretas, no respeito à historicidade da família. Na individuação desse interesse, a avaliação do juiz, vista aqui, deve ser expressa com prudência e equilíbrio, identificando-se na situação de fato à luz de valores não subjetivos e arbitrários, mas sim emergentes do personalismo constitucional.
No campo do Direito Internacional privado, para além do desfecho do caso privado de Borja Brañanova, com a correta aplicação da lei estrangeira, representou na esfera coletiva uma solução alternativa mais eficiente e direta do que o método conflitual clássico, com a criação de uma lei de família aplicável a não muçulmanos.
Mesmo sem ignorar que orientando este movimento legislativo estiveram os estratégicos interesses dos Emirados Árabes Unidos em ganhar visibilidade e reconhecimento como um país aberto e inovador, reforçando sua liderança global enquanto destino para novos talentos, não se pode deixar de reconhecer a sensibilidade dos seus legisladores.
Enfim, o ineditismo e a relevância do caso de Borja Brañanova nos levaram a apresentá-lo neste texto, esperando que seja fonte de inspiração para todos aqueles que militam pela igualdade parental e pela tutela do superior interesse da criança e do adolescente.