O novo conceito de fiscalização do setor elétrico brasileiro
1º de Maio de 2021, por Thiago Carvalho Fonseca, advogado da área de energia do Tortoro, Madureira & Ragazzi Advogados
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Programa de Pós-Graduação lato sensu da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo como requisito parcial para obtenção do título de especialista em Direito Administrativo. Orientador: Professor Doutor Thiago Marrara de Matos.
THIAGO CARVALHO FONSECA
Advogado. Especialista em Processo Civil e Direito Administrativo pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP).
Sumário: I. Introdução – II. O Estado “regulador” brasileiro – 2.1. Estado liberal – 2.2. Estado social – 2.3. Estado regulador – 2.4. O Estado “regulador” brasileiro – III. Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL – 3.1. Natureza jurídica da ANEEL – 3.2. Novo marco legal das agências reguladoras – 3.3. Das ações fiscalizadora e punitiva da ANEEL – IV. Boas práticas regulatórias e a fiscalização responsiva – 4.1. O início da ação fiscalizadora – 4.2. A necessidade de mudança – 4.3. Os princípios de boas práticas regulatórias da OCDE – 4.4. Da regulação responsiva – V. Novo conceito de fiscalização – 5.1. A fiscalização em 3 níveis – 5.2. Estudos de casos – 5.3. A Resolução Normativa de Nº 846, de 2019 – VI. Conclusão – VII. Bibliografia.
Resumo: Na persecução dos interesses público e privado, a atividade regulatória exerce função de proeminência no setor elétrico. Inclusive, as competências fiscalizatórias e sancionadoras da Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL são ferramentas contundentes desta atuação. Assim, este artigo tem por pretensão fortalecer a frente de pesquisa relacionada ao processo de fiscalização da ANEEL, notadamente após a Resolução Normativa de nº 846, de 2019, que, incorporando princípios de boas práticas regulatórias internacionais da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, aprovou os novos procedimentos, parâmetros e critérios para a imposição de penalidades aos agentes do setor de energia elétrica.
Palavras-chave: 1. Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL; 2. Processo de fiscalização; 3. Princípios de boas práticas regulatórias da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE; 4. Modelo trifásico de fiscalização; e 5. Resolução Normativa de nº 846, de 2019.
Abstract: In pursuing public and private interests, regulatory activity plays a prominent role in the electricity sector. In fact, the inspection and sanctioning powers of the National Electric Energy Agency (Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL) are powerful tools for this performance. Thus, this article intends to strengthen the research front related to the ANEEL inspection process, notably after the Normative Resolution No. 846, of 2019, which, incorporating principles of good international regulatory practices of the Organization for Economic Cooperation and Development – OECD, approved the new procedures, parameters and criteria for imposing penalties on agents in the electricity sector.
Keywords: 1. National Electric Energy Agency (Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL; 2. Supervision Process; 3. Principles of good regulatory practice of the Organization for Economic Cooperation and Development – OECD; 4. Supervision three-phase model; 5. Normative Resolution nº 846, of 2019.
I – INTRODUÇÃO
Na persecução dos interesses público e privado, a atividade regulatória exerce função de proeminência no setor elétrico, no anseio de se garantir a maior eficiência desse mercado regulado. Inclusive, as competências fiscalizatórias e sancionadoras da Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL são ferramentas contundentes desta atuação.
O trabalho a ser desenvolvido tem por pretensão fortalecer a frente de pesquisa relacionada ao novo processo de fiscalização da ANEEL, consolidado após a publicação da Resolução Normativa de nº 846, de 2019, que aprovou os novos procedimentos, parâmetros e critérios para a imposição de penalidades aos agentes do setor de energia elétrica e dispõe sobre diretrizes gerais da fiscalização da agência.
Em um primeiro momento, almeja-se estabelecer conceitos e diretrizes básicas, suscetíveis a auxiliarem na compreensão final da temática desenvolvida. Por este motivo, no Item II deste artigo, apresenta-se a narrativa sobre os modelos de Estado. Em cotejo com os modelos liberal e social, serão apresentadas as características do Estado “regulador” brasileiro.
Para tanto, far-se-á um breve exame sobre o cenário histórico político e econômico brasileiro, a partir do ex-presidente Fernando Collor, por meio da instituição do Programa Nacional de Desestatização, até o governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, com a edição da Lei de nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, que dispõe sobre o sistema da descentralização dos serviços públicos, mediante o regime de concessão e permissão de sua prestação. Inclusive, além das grandes privatizações brasileiras ocorridas neste período, em vários setores da economia, tem-se o nascimento e fortalecimento das agências reguladoras, constituídas com a função de regular e fiscalizar as atividades econômicas sob o regime de serviço público.
Em seguida, no Item III, pretende-se discorrer sobre a ANEEL – então instituída em 1996, com a finalidade de regular e fiscalizar a produção, transmissão e comercialização de energia elétrica –, bem como sobre o novo marco legal brasileiro das agências reguladoras (Lei 13.848, de 2019).
Além disso, em relação à ação fiscalizadora da ANEEL, mostra-se oportuno destacar que o artigo 16, do Decreto de nº 2.335, de 6 de outubro de 1997, já estabelecia que esta “[…] visará, primordialmente, à educação e orientação dos agentes do setor de energia elétrica, à prevenção de condutas violadoras da lei e dos contratos e à descentralização de atividades complementares aos Estados”.
Nos itens IV e V, direciona-se o estudo ao próprio processo de fiscalização da ANEEL. Particularmente no Item IV, estabelece-se uma análise do modelo inicial do processo de fiscalização da ANEEL¹, que perdurou por quase 20 anos.
De início, a ANEEL apresentava uma abordagem mais incisiva no mercado, com a prática de um processo administrativo evidentemente punitivo.
Prevalecia a ideia de que o regulador deveria fiscalizar o maior número possível de agentes e instalações, no cumprimento de todas as normas regulatórias. E, nas hipóteses de não conformidades, utilizar sanções administrativas (multas) como instrumento de persuasão ao cumprimento das normas.
Contudo, ao passar dos anos, com a evolução do Estado e da sociedade, este modelo administrativo essencialmente punitivo mostrou-se obsoleto, clamando por mudanças pelos atores envolvidos. No mesmo período, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico – OCDE publicou um trabalho com onze princípios de boas práticas regulatórias, que contribuíram para a formação de um novo conceito de regulação no Brasil.
Ainda no Item IV, outras questões foram ponderadas, como os princípios da OCDE que foram incorporados pelo regulador, como da execução baseada em evidência, da seletividade, do foco no risco e na proporcionalidade, da regulação responsiva, da promoção de conformidade e da integração de informação.
Outros princípios já se faziam presentes, a exemplo dos princípios de governança transparente, do processo claro e justo na ação fiscalizadora e do profissionalismo. E, por fim, alguns permanecem como desafios, sendo eles a visão de longo prazo e a coordenação e a consolidação.
Por esse motivo, no Item V, direcionando para a conclusão do trabalho proposto, apresenta-se o novo modelo de fiscalização da ANEEL, trifásico.
No primeiro nível, o de monitoramento, estão alocados todos os agentes do setor de energia elétrica. Assim, a ANEEL monitorará essas empresas, valendo-se de bases de dados e de indicadores de qualidade e desempenho. A partir dessa fiscalização, acompanhada de inteligência analítica, o regulador realizará um diagnóstico, de modo a identificar eventuais empreendimentos que apresentam um risco potencial para o setor. Além disso, o monitoramento dos agentes permitirá o estabelecimento de padrões de referência ou de qualidade para o setor.
No segundo nível, ou ação à distância, o universo de agentes mostra-se significativamente menor e contempla os empreendimentos selecionados por meio da análise preliminar de risco. Assim, para esses agentes, a fiscalização seguirá de forma mais minuciosa, com o exame pormenorizado de informações qualitativas detalhadas. Segundo o próprio regulador, nesse momento, mostra-se possível o surgimento de ocorrências em que a avaliação de risco inicial não se confirme, os denominados de “Falso Positivo”.
Por fim, no terceiro e último nível, nota-se a ação presencial do regulador em determinados agentes, para coletar evidências ou, ainda, inspecionar determinado tipo de fiscalização. Contudo, a inteligência desse modelo mostra que este tipo de atuação incisiva será realizado após as etapas anteriores, de forma residual. Inclusive, por esse motivo, com o exaurimento do diagnóstico das informações, a atuação in loco será mais direcionada e objetiva aos possíveis pontos de atenção.
Após e de forma objetiva, ainda no Item V, apresentaram-se alguns estudos de casos expostos por uma Especialista em Regulação e Superintendente Adjunta de Fiscalização dos Serviços de Geração da ANEEL, em seu trabalho acadêmico sobre a reforma do modelo tradicional de fiscalização do setor elétrico brasileiro, com alguns resultados surpreendentes e satisfatórios ao supracitado modelo trifásico.
Na sequência e por fim, o trabalho contemplou uma análise da Resolução Normativa de nº 846, de 2019, que aprovou os novos procedimentos, parâmetros e critérios para a imposição de penalidades aos agentes do setor de energia elétrica e dispõe sobre diretrizes gerais da fiscalização da ANEEL.
Nesse exame, algumas novidades regulatórias foram apontadas, como o estabelecimento de diretrizes gerais do processo de fiscalização da ANEEL, com destaque à ressalva de que a “fiscalização visará, primordialmente, à educação e orientação dos agentes do setor de energia elétrica, à prevenção de condutas violadoras da lei, dos regulamentos e dos contratos” (artigo 2º).
Dentre outros pontos, constatou-se que o Capítulo II da supracitada Resolução Normativa ratificou a implementação dos princípios de boas práticas regulatórias convalidados pela OCDE, notadamente da execução baseada em evidência, da seletividade, da regulação responsiva e da integração de informação.
Por esses motivos, concluindo, entende-se que não se trata, apenas e tão somente, do estabelecimento de um novo rito a ser observado pelo regulador e pelos agentes regulados. Muito pelo contrário. Este novo regramento concretiza um novo conceito de atuação do regulador, que será mais ativa e orientativa, o que poderá refletir em uma redução no número de multas e recursos administrativos, que muitas vezes resultam em disputas judiciais.
Desse modo, a partir de então, toda a condutada do regulador no processo de fiscalização deverá ser revisitada e conduzida pelos supracitados preceitos, sob pena de deslegitimar o próprio ato administrativo, tornando nulo em sua própria essência.
Por fim, destaca-se que o presente trabalho foi desenvolvido basicamente pela pesquisa bibliográfica e documental na área jurídica. Para tanto, foram analisados e levantados diplomas normativos do ordenamento jurídico pátrio, seguindo-se o cotejo analítico de pesquisas doutrinárias e artigos extraídos das páginas eletrônicas da ANEEL e da OCDE.
ITEM II – O ESTADO “REGULADOR” BRASILEIRO
2.1. ESTADO LIBERAL
O Estado liberal apresentava como diretriz o mercado natural, autorregulado, em que a relação de trabalho era conduzida essencialmente pela vontade das partes, sem a interferência estatal.
As limitações ao poder do soberano impostas pelo modelo de Estado Liberal são um ponto fundamental de sua natureza. Tais limitações constituem o objetivo primeiro do movimento que culminou no Estado Liberal, pois a corrente ideológica que ao fim prevaleceu no seio da Revolução Francesa objetivava a criação de um mercado autorregulado imune a interferências estatais de qualquer gênero. Desse modo, por meio da concepção de lei “geral e abstrata” portadora de uma igualdade estritamente formal e do abstencionismo econômico, o Estado Liberal atribuiu segurança jurídica às trocas mercantis, criou um mercado de trabalho repleto de mão de obra barata (POLANYI, 1957, p. 73) e assegurou à iniciativa privada a realização de qualquer atividade potencialmente lucrativa².
Desse modo, buscava-se contrapor a soberania estatal e os regimes absolutistas, estabelecendo como preceitos o direito à propriedade e à liberdade do indivíduo. E, assim, almejava-se situar uma dicotomia entre os planos decisórios político e econômico.
Sobre essas premissas, até o início do século XX, prevalecia a ideia de um mercado natural e autorregulado, imune às interferências estatais de qualquer gênero, em que a livre concorrência e os próprios agentes tenderiam a encaminhar os fatores de produção.
O caráter natural de funcionamento do mercado, conforme restou muito bem registrado por Araujo, “veio a ser chamado por Adam Smith, na obra
clássica The Wealth of Nations, de mão invisível. No mercado, uma espécie de mão invisível guiaria os seus operadores para as aplicações corretas de recursos”³.
Contudo, a igualdade negocial em que se fundava o liberalismo era meramente formal, ante a hegemonia econômica, social e política da classe dominante (burguesa), em relação ao proletariado. Soma-se, ainda, que algumas questões estruturais eram colocadas em segundo plano, como as condições de trabalho, a mobilidade de pessoas e mercadorias, os incentivos na produção, entre outros. Essa conjuntura contribuiu para a derrocada desse modelo de Estado.
2.2. ESTADO SOCIAL
Contestando as consequências advindas do modelo liberal clássico de mercado, após a Primeira Guerra Mundial (1914-1919) e a Grande Depressão, também conhecida como Crise de 1929, o Estado social manifesta-se na busca do equilíbrio entre o capital e o trabalho, bem como na mitigação dos conflitos sociais.
Esse período de ápice perdurará por mais meio século e só entrará em declínio a partir de 1880, juntamente com o ocaso dessa fase do capitalismo. O espírito liberal vai ser fortemente abalado pela Primeira Guerra Mundial, momento em que já começa a existir uma forte tendência ao Estado do Bem-Estar (LASKI, 1973, p. 172) e não mais será possível falar em um Estado Liberal nos moldes acima descritos⁴.
Para tanto, a dicotomia que antes prevalecia entre os planos decisórios político e econômico deixou de existir. E, assim, o Estado passou a exercer a sua influência direta em diversos setores da economia, mediante indução, direção e absorção das próprias atividades.
Nessa seara, mostra-se oportuno destacar a assertiva dos direitos sociais, como à educação, à saúde, ao trabalho – como o estabelecimento de salário mínimo, de jornada máxima de trabalho, dos encargos trabalhistas –, à segurança, à previdência social, entre outros.
Tratou-se de uma mudança significativa na própria estrutura jurídica do Estado, que passou a acompanhar, a participar e definir os desdobramentos da própria estrutura econômica. Inclusive, mediante a constituição de entes e empresas públicas.
Conforme foi assentado tanto por Nusdeo (2005), como por Araujo (2013, p. 27), esse novo cenário também apresentou algumas ressalvas, a saber: (a) interesses próprios e eventualmente distintos do Estado e da classe dominante; (b) grupos de pressão; (c) o poder da burocracia e a juridificação, sendo este último um fenômeno de multiplicação das normas legais e regulamentares, que eventualmente não são absorvíveis naturalmente pelo mercado; (d) a ausência de uma fronteira clara e objetiva entre as áreas próprias a cada um dos centros decisórios – Estado e Mercado –; (e) endividamento público.
2.3. ESTADO REGULADOR
A última década do século XX observou o reaparecimento de conceitos liberais, com o objetivo de conter a atuação do Estado na economia, como produtor direto de bens e serviços. Propagava-se a ideia de que as empresas estatais seriam mais eficientes se fossem controladas privadamente, pelo mercado.
Buscava-se, ainda, diminuir o “peso” do Estado, na medida em que o nível de endividamento público não se refletia necessariamente na qualidade dos serviços colocados à disposição da população.
Desse modo, notadamente na América Latina e na Europa, deparamo-nos com uma onda de privatizações de entes e empresas estatais, bem como com a liberalização do mercado (NUSDEO, 2005) (ARAUJO, 2013, p. 27).
Contudo, as concessões, as permissões e as autorizações de determinados serviços de interesse público foram essencialmente acompanhadas de regulação, como meio de o Estado intervir indiretamente nas atividades, sem exercer a sua ingerência política.
Desse modo, no mesmo período, seguindo notadamente o modelo de origem anglo-americana, em que o Estado delega a gestão de serviços públicos a empresas privadas, tem-se o estabelecimento e o fortalecimento das agências administrativas independentes, denominadas agências reguladoras, então instituídas com a função de regular e fiscalizar determinados setores da economia (Cruz, 2009, p. 55).
Disso decorre, assim, uma atuação indutiva do Estado, com a edição de normas regulamentares, em prejuízo da propriedade pública como meio de exploração direta da atividade econômica e dos possíveis vícios detectados anteriormente no Estado social.
Esse modelo de Estado ganhou força nos últimos anos, sendo que no Brasil tem-se o estabelecimento de diversas agências reguladoras nos mais distintos setores da economia, nos campos de Energia Elétrica, do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis, de Telecomunicações, de Vigilância Sanitária, de Saúde Suplementar, de Águas, de Transportes Aquaviários e Terrestres, entre outros. De todo modo, mostra-se oportuno destacar que o Estado brasileiro ainda permaneceu como titular das atividades consideradas exclusivas e estratégicas.
2.4. O ESTADO “REGULADOR” BRASILEIRO
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 174, estabelece que, “como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado”. E, na sequência, o artigo 175 prevê que “incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos”.
Amparados nesses permissivos constitucionais, no governo do ex-presidente Fernando Collor, por meio da Lei nº 8.031, de 12 de abril de 1990, tem-se a instituição do Programa Nacional de Desestatização – PND, que tinha como objetivo reorganizar a posição estratégica do Estado na economia.
O conceito era de contribuir para a redução do tamanho do Estado e da própria dívida pública, bem como permitir a retomada de investimentos nas empresas e atividades que vierem a ser transferidas à iniciativa privada. Colaborando, ainda, para modernização do parque industrial do País.
Desse modo, entre os anos de 1990–1992, foram privatizadas 18 empresas atuantes no setor primário da economia, especialmente no setor siderúrgico. E, no ano de 1993, agora no governo do ex-presidente Itamar Franco, tem-se a privatização da Companhia Nacional de Siderurgia – CSN.
Sobre esse meandro histórico, Araujo aduz que, “entre os anos de 1990 e 1994, foram privatizadas 33 empresas nos setores de siderurgia, fertilizantes e petroquímica, tendo sido arrecadados oito bilhões e quinhentos milhões de dólares”⁵.
Contudo, a ideia do Estado regulador ganhou força no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, após a edição da Lei de nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, que dispõe sobre o sistema da descentralização dos serviços públicos, mediante o regime de concessão e permissão de sua prestação, previsto no supracitado artigo 175 da Carta Magna. E, ainda, após a Lei de nº 9.074, de 7 de julho de 1995, que estabelece normas para outorga e prorrogações das concessões e permissões de serviços públicos.
Vários foram os aspectos disciplinados na lei, como os relativos à contratação, especificando-se os encargos do concedente e do concessionário; à licitação; aos usuários; à política tarifária e, enfim, àqueles que indicam o perfil do instituto. Conquanto de forma um pouco lacônica, foi também destinada disciplina para as permissões de serviço público⁶.
Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro, o regime de concessão foi pioneiro na transferência da execução de serviço público pelo particular.
A concessão de serviço público foi a primeira forma que o Poder Público utilizou para transferir a terceiros a execução de serviço
público. Isto se deu a partir do momento em que, saindo do liberalismo, o Estado foi assumindo novos encargos no campo social e econômico. A partir daí, sentiu-se a necessidade de encontrar novas formas de gestão do serviço público e da atividade privada exercida pela Administração. De um lado, a ideia de especialização, com vistas à obtenção de melhores resultados; de outro lado, e com o mesmo objetivo, a utilização de métodos de gestão privada, mais flexíveis e mais adaptáveis ao novo tipo de atividade assumida pelo Estado⁷.
Nos termos da referida legislação, considera-se concessão de serviço público a “delegação de sua prestação, feita pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência, à pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco e por prazo determinado” (artigo 2, inciso II). Permissão, por sua vez, é a “delegação, a título precário, mediante licitação, da prestação de serviços públicos, feita pelo poder concedente à pessoa física ou jurídica que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco” (artigo 2, inciso IV).
Ainda no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, tem-se a edição da Lei nº 9.491, de 9 de setembro de 1997, que, além de alterar os procedimentos relativos ao Programa Nacional de Desestatização – PND, revogou expressamente a Lei n° 8.031, de 1990.
Além do mais, a nova legislação, no artigo 1º, inciso V, estabelece que o PND apresenta como objetivo fundamental “permitir que a Administração Pública concentre seus esforços nas atividades em que a presença do Estado seja fundamental para a consecução das prioridades nacionais”.
Nesse período, foram implementadas as grandes privatizações brasileiras, em vários setores da economia, a exemplo das empresas Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), a Telebrás, a Eletropaulo, entre outras.
De fato, a partir de 1997, foram realizadas as grandes privatizações, com a venda da Companhia Vale do Rio Doce, o término da desestatização da Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA), a venda da Malha Nordeste, o arrendamento do terminal de contêineres 1 do Porto de Santos, a venda do Banco Meridional do Brasil S.A., com a arrecadação, no total, de mais de quatro bilhões e duzentos e sessenta e cinco milhões de dólares (ARAUJO L. E., 2009). Também se deu ênfase às privatizações de âmbito estadual. A venda das empresas de telecomunicação de propriedade da União tornou-se possível com a edição da Lei Geral de Telecomunicação, em 16 de julho de 1997. No mesmo ano, foram licitadas concessões de telefonia móvel celular para três áreas do território nacional no valor de quatro bilhões de dólares⁸.
E, com isso, tem-se o término do monopólio estatal em determinadas atividades da economia, redefinindo o seu papel de atuação. Por outro lado, no mesmo período, nota-se o estabelecimento e o fortalecimento das agências reguladoras, então instituídas com a função de regular e fiscalizar as atividades econômicas sob o regime de serviço público.
Embora a regulação no Brasil seja relativamente nova, teve início na segunda metade da década de 90, ela introduziu uma nova fase na economia. A partir daí se fez necessário um sistema regulador eficiente, que seja fundamental, pois o processo de privatização chegou aos serviços essenciais. A função regulatória é imprescindível para o processo de desestatização, pois na maioria das vezes trata-se de processos complexos que são realizados mediantes contratos de longo prazo⁹.
Desse modo, no ano de 1996, foi instituída a Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, “autarquia sob regime especial, vinculada ao Ministério de Minas e Energia, com sede e foro no Distrito Federal e prazo de duração indeterminado”, com a “finalidade de regular e fiscalizar a produção, transmissão e comercialização de energia elétrica, em conformidade com as Políticas e Diretrizes do Governo Federal” (respectivamente, artigos 1º e 2º da Lei de nº 9.427, de 26 de dezembro de 1996).
Nos anos seguintes, foram criadas outras agências reguladoras, a exemplo da Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL¹º e a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíves – ANP¹¹.
O processo de desestatização (ou privatização), por ter propiciado, como vimos, a ampliação do regime de concessões, mediante a transferência de vários serviços públicos a empresas da iniciativa privada, gerou o nascimento das agências reguladoras. Essas entidades, dependendo da lei reguladora do serviço concedido, tanto podem ter a natureza de concedentes no contrato, como podem ter sido criadas apenas para exercer o controle sobre as atividades concedidas e sobre a atuação dos concessionários. Seja qual for a sua posição, é fundamental e inafastável a função que a lei lhes outorga: cabe-lhes exercer severa fiscalização sobre a execução do serviço e o desempenho do concessionário, porquanto não se pode esquecer que o serviço precisa ser adequado e isso representa garantia para os usuários, que não podem ficar prejudicados pela omissão fiscalizadora do Poder Público¹².
Inclusive, em complemento, Luciana Helena Salgado defende que a função da regulação na economia:
[…] é promover o interesse público, garantindo, de um lado, a lucratividade que viabilize os investimentos privados, e, de outro, o bem-estar dos consumidores por meio da disponibilização do serviço, em condições adequadas de qualidade e preço. O grande desafio para o regulador é encontrar o ponto ótimo que equilibre rentabilidade da operação e bem-estar¹³.
Outrossim, a opção desse modelo, na percepção de Araujo (2013, p. 39) e de Binenbojm (2008, p. 253), teve como alicerce a autonomia das agências regulares, que conduzem aos possíveis investidores externos os sinais de transparência e de tecnicidade.
De todo modo, existem algumas críticas fundadas acerca da implementação desse modelo neoliberal no Brasil, notadamente o fato de o Estado ainda se fazer presente, seja pela notória ascensão dos gastos públicos nos últimos anos, seja pela elevada e complexa carga tributária. Segundo Araujo¹⁴:
[…] a aplicação do ideário neoliberal no Brasil não significou a mudança do modelo de Estado social para o modelo do Estado regulador. Representou, sim, a inserção de alguns ingredientes do modelo do Estado regulador, fazendo surgir uma figura híbrida em que se apresenta um Estado ainda de grandes proporções e influência não apenas pela tributação e despesa pública, mas agora também pela edição de normas […]. Na verdade, ao adotar características do Estado regulador, o Estado brasileiro se desincumbiu de algumas obrigações, que passaram a ser cobradas adequadamente pelos investidores privados, e o cidadão viu-se na contingencia de ter que pagar tributos e tarifas por serviços que originalmente eram obrigação do Estado.
Não obstante, sem adentrar discussões ideológicas, entende-se que esse modelo neoliberal, mesmo que implementado de forma híbrida no Brasil, representou uma mudança significativa para o país, por permitir uma nova concepção sobre o papel do Estado. Afinal, diante da diversidade e da complexidade das demandas econômicas e sociais que são direcionadas ao Estado, as agências reguladoras representam manifesto aprimoramento da disposição institucional, no sentido de propiciar uma resposta mais breve, efetiva e técnica da Administração Pública.
Sobre esses fundamentos e por dificultar a utilização ilegal do Estado para fins privados, ante o cenário de corrupção sistêmica evidenciado no Brasil, entende-se que esse modelo refletiu em uma melhora significativa na realidade nacional e na própria prestação de determinados serviços públicos pelos agentes privados.
ITEM III – AGÊNCIA NACIONAL DE ENERGIA ELÉTRICA – ANEEL
3.1. NATUREZA JURÍDICA DA ANEEL
Sobre à natureza jurídica das agências reguladoras, Odete Medauar esclarece que¹⁵:
As agências reguladoras brasileiras, em nível federal, começaram a ser criadas a partir de fins de 1996, com natureza de autarquias especiais, integrantes da Administração indireta. Embora se busquem antecedentes brasileiros das agências reguladoras (sobretudo em órgãos criados nas primeiras décadas do século XX) ou se afirme que sempre houve entes públicos dotados de funções reguladoras, fiscalizadoras, normativas, as atuais agências reguladoras surgiram em contexto diverso do quadro existente nos primórdios do século XX; e são dotadas de características diferentes em relação a figuras antigas, como exemplo, a atribuição de compor conflitos, entre usuários e prestadores de serviços, entre prestadores de serviços, entre consumidores e fornecedores etc.
Com efeito, em atenção ao artigo 37, inciso XIX, da Constituição Federal¹⁶, a Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL foi instruída via Lei nº 9.427, de 1996, como “autarquia sob regime especial, vinculada ao Ministério de Minas e Energia, com sede e foro no Distrito Federal e prazo de duração indeterminado” (artigo 1º), com a “finalidade de regular e fiscalizar a produção, transmissão e comercialização de energia elétrica, em conformidade com as Políticas e Diretrizes do Governo Federal” (artigo 2º).
Desse modo, em relação à natureza jurídica da ANEEL, não houve qualquer novidade na sua instituição como autarquia. De outro lado, há que ressalvar essa especialidade em seu regime, que confere a sua autônima técnica, financeira e administrativa.
Conforme restou anteriormente pontuado, as agências reguladoras foram instituídas com a finalidade de ajustar as possíveis falhas do livre mercado, de forma a proporcionar condições favoráveis para o seu desenvolvimento. Por este motivo, a tecnicidade e a independência das agências reguladoras devem prevalecer em todo processo regulatório.
Por vezes, nota-se o estabelecimento de políticas públicas provenientes de crenças e preferências, independentemente do viés ideológico, eventualmente a margem do próprio interesse social. Assim, prevalece a importância da especialidade da ANEEL, com o escopo de estabelecer um ambiente juridicamente saudável e previsível, em princípio, sem interferência política e partidária, com compromisso com a credibilidade, na busca do equilíbrio entre os fatores econômicos e sociais (CHINI e VINHAS, 2019, p. 85).
Para Alexandre Chini e Guilherme Barbosa Vinhas, a independência decisória da agência reguladora é a particularidade que a distingue das outras estruturas de poder do Estado, permitindo o estabelecimento de regras de mercado minimamente perene (2019, p. 85).
Por esses motivos, mostrou-se necessário estabelecer alguns atributos especiais ao regulador, a saber: personalidade jurídica própria; autonomia decisória; patrimônio e receita próprios; seus diretores sejam nomeados com mandatos fixos; entre outros.
Podem-se considerar como características marcantes das agências reguladoras a independência administrativa, a autonomia financeira, a ausência de vinculação hierárquica − subordinação − ao Ministério supervisor e a estabilidade e mandato fixo dos dirigentes. Entretanto, ressalte-se que somente a última característica pode configurar-se como distintiva das agências reguladoras, visto que as demais, em maior ou menor grau, são encontradas em qualquer outra autarquia da Administração Pública brasileira¹⁷.
Essa situação não foi diferente com a ANEEL.
Nos artigos 3º e 3º-A da Lei de nº 9.427, de 1996, o legislador estabeleceu as diversas competências do regulador, sem prejuízo daquelas estabelecidas em outras leis especiais – confirmando, assim, a sua Expertise. Na sequência, notam-se algumas disposições acerca da estrutura organizacional da entidade, como o fato de ser dirigida por um Diretor-Geral e quatro Diretores, em regime de colegiado, com mandatos não coincidentes de 5 (cinco) anos – preservando a sua autônima administrativa –. Dentre outras disposições, ainda há um capítulo próprio sobre as receitas e acervos da autarquia, garantindo a sua autônima financeira.
Com a intenção de pormenorizar as disposições gerais da Lei de nº 9.427, de 1996, com fundamento no artigo 84, incisos IV e VI, alínea a, da Constituição Federal¹⁸, ainda sobreveio o Decreto de nº 2.335, de 6 de outubro de 1997, que confirmou a natureza jurídica da ANEEL, como “[…] autarquia sob regime especial, com personalidade jurídica de direito público e autonomia patrimonial, administrativa e financeira, com sede e foro no Distrito Federal […]” (artigo 1º).
Sem adentrar as pormenorizações, tem-se que o Decreto de nº 2.335, de 1997, preservou a tecnicidade e a independência da ANEEL.
3.2. NOVO MARCO LEGAL DAS AGÊNCIAS REGULADORAS
No anseio de aprimorar o funcionamento e a articulação das agências reguladoras, notadamente diante do insulamento burocrático gerado pela setorialização excessiva no nível federal, em 25 de junho de 2019, foi sancionada a Lei 13.848, que dispõe sobre a gestão, a organização, o processo decisório e o controle social das agências reguladoras.
Considerado como um novo marco legal das agências reguladoras no Brasil, a Lei 13.848, de 2019, ratifica que o regime especial conferido à agência reguladora é “caracterizada pela ausência de tutela ou de subordinação hierárquica, pela autonomia funcional, decisória, administrativa e financeira e pela investidura a termo de seus dirigentes e estabilidade durante os mandatos” (artigo 3º).
Ato contínuo, os artigos 4º e 5º da Lei 13.848, de 2019, confirmam que, na preservação do interesse público, o processo decisório do regulador será acompanhado de alguns princípios constitucionais, a saber: a proporcionalidade, a razoabilidade e a motivação (FONSECA, 2019).
Tem-se, ainda, a preocupação sobre o poder regulamentar, considerando os problemas sistêmicos e econômicos que as definições desses órgãos específicos podem causar. Assim, padronizando algumas práticas de governança, a Lei 13.848, de 2019, situa que as alterações de atos normativos de interesse geral dos agentes econômicos, consumidores ou usuários dos serviços prestados deverão ser precedidas de uma Análise de Impacto Regulatório (AIR), de consulta pública e, eventualmente, de audiência pública (FONSECA, 2019).
O artigo 7º estabelece que o processo decisório das agências será colegiado, em se tratando de regulação. Já o caput do artigo 8º resguarda a publicitação do ato, na medida em que “as reuniões deliberativas do conselho diretor ou da diretoria colegiada da agência reguladora serão públicas e gravadas em meio eletrônico”.
Necessariamente, “serão objeto de consulta pública, previamente à tomada de decisão pelo conselho diretor ou pela diretoria colegiada, as minutas e as propostas de alteração de atos normativos de interesse geral dos agentes econômicos, consumidores ou usuários dos serviços” (artigo 9º). Contudo, se o caso, “a agência reguladora, por decisão colegiada, poderá convocar audiência pública para formação de juízo e tomada de decisão sobre matéria considerada relevante” (artigo 10).
Especificamente para o setor elétrico, arrazoando sobre a importância da participação da sociedade no processo decisório da ANEEL, Urias Martiniano Garcia Neto alerta que¹⁹:
Em que pesa a existência desses mecanismos, cabe esclarecer que não adianta submeter os temas relevantes do setor elétrico à população para a contribuição, sem que a ANEEL realmente escute os pleitos dos agentes e busque de fato entender a necessidade de mercado, sob pena desses instrumentos serem inócuos.
Trata-se de uma preocupação legítima, que tem por objeto preservar a própria Lei 13.848, de 2019, notadamente a importância das contribuições advindas das consultas e audiências públicas. Assim, entende-se que o regulador deverá avaliar e sopesar, de forma motiva, todas as manifestações dos agentes.
Além disso, em atenção a autonomia decisória do regulador, o artigo 13 prevê que a agência deverá obrigatoriamente decidir as matérias submetidas a sua apreciação, nos prazos fixados na legislação ou, subsidiariamente, em seu regimento interno.
Outros aspectos importantes foram disciplinados na lei, como o estabelecimento de contrapesos a atuação dos reguladores. Inicialmente, sobre o controle externo das agências reguladoras, o artigo 14 descreve que este será exercido pelo Congresso Nacional, com auxílio do Tribunal de Contas da União.
Por outro lado, além do Plano Estratégico, com a descrição dos objetivos, as metas e os resultados esperados para cada período quadrienal, o regulador deverá elaborar anualmente o seu Plano de Gestão, com a definição de ações, resultados e metas relacionados aos processos finalísticos e de gestão. Existe, ainda, a obrigatoriedade de se constituir uma Agenda Regulatória, que conterá o conjunto dos temas prioritários a serem regulamentados no período.
Outro contrapeso relevante é a instituição de uma ouvidoria em cada agência reguladora, sem subordinação hierárquica, que zela pela qualidade e pela tempestividade dos serviços prestados, bem como acompanha o processo interno de apuração de denúncias e reclamações dos regulados contra a atuação do próprio regulador. E, ainda, tem a função de elaborar relatório anual de ouvidoria sobre as atividades da agência (artigo 22).
Por fim, o novo marco legal versa sobre a interação operacional entre as agências reguladoras – como a possibilidade de se “[…] editar atos normativos conjuntos dispondo sobre matéria cuja disciplina envolva agentes econômicos sujeitos a mais de uma regulação setorial” (artigo 29) – e entre os órgãos de defesa da concorrência, do consumidor e do meio ambiente.
Sobre essa perspectiva, face os eventuais entraves ocasionados pelo excesso de burocracia estatal, entende-se que a Lei de nº 13.848, de 2019, além de padronizar a forma de atuação e articulação, fortalece o papel das agências reguladoras no Brasil.
3.3. DAS AÇÕES FISCALIZADORA E PUNITIVA DA ANEEL
Sem submergir na discussão doutrinária sobre a extensão do poder normativo conferido às agências reguladoras, face à submissão cerrada ou não ao princípio da legalidade (artigo 5, inciso II, da Constituição Federal²º), pondera-se que a Lei de nº 9.427, de 1996, especifica o âmbito de atuação da ANEEL.
Prontamente nos artigos 3º e 3º-A, o legislador estabeleceu as diversas competências da ANEEL, sem prejuízo daquelas estabelecidas em outras leis especiais. Em relação ao presente trabalho, merece destaque o inciso X, do artigo 3º, que contempla a competência da ANEEL para fixar as multas administrativas a serem impostas aos concessionários, permissionários e autorizados de instalações e serviços de energia elétrica. Transcreve-se o referido dispositivo legal:
X – fixar as multas administrativas a serem impostas aos concessionários, permissionários e autorizados de instalações e serviços de energia elétrica, observado o limite, por infração, de 2% (dois por cento) do faturamento, ou do valor estimado da energia produzida nos casos de autoprodução e produção independente, correspondente aos últimos doze meses anteriores à lavratura do auto de infração ou estimados para um período de doze meses caso o infrator não esteja em operação ou esteja operando por um período inferior a doze meses. (Incluído pela Lei nº 9.648, de 1998)
Em complemento, o Decreto de nº 2.335, de 6 de outubro de 1997, nos artigos 16 e 17, regulamenta a ação fiscalizadora da ANEEL, que apresenta com o objetivo de orientar os agentes do setor de energia elétrica, prevenir eventuais violações à lei e os contratos, bem como preservar à descentralização de atividades complementares aos Estados.
O artigo 16 prevê, em seus incisos, que a ação fiscalizadora da ANEEL visará “instruir os agentes e consumidores quanto ao cumprimento de suas obrigações contratuais e regulamentares” (inciso I), “fazer cumprir os contratos, as normas e os regulamentos da exploração dos serviços e instalações de energia elétrica” (inciso II), “garantir o atendimento aos padrões de qualidade, custo, prazo e segurança compatíveis com as necessidades regionais e específicas de cada categoria de agente envolvido” (inciso III), “garantir o atendimento aos requisitos de quantidade, adequação e finalidade dos serviços e instalações de energia elétrica” (inciso IV”) e “subsidiar, com informações e dados necessários, a ação regulatória, visando à modernização do ambiente institucional de atuação da ANEEL” (inciso V).
Na sequência, o artigo 17 reafirma a competência punitiva da ANEEL, estabelecendo que a agência poderá adotar, em conformidade com as normas regulamentares e os respectivos contratos, as seguintes sanções administrativas: (i) advertência escrita; (ii) multas; (iii) suspensão temporária de participação em licitações para obtenção de novas concessões, permissões ou autorizações; (iv) impedimento de contratar com a Autarquia, em caso de não execução total ou parcial de obrigações definidas em lei, em contrato ou em ato autorizativo; (v) intervenção administrativa; (vi) revogação da autorização; e (vii) caducidade da concessão ou permissão.
Somam-se, ainda, os artigos 32 e seguintes da Lei de nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, que dispõe sobre o sistema da descentralização dos serviços públicos, mediante o regime de concessão e permissão de sua prestação.
Como exemplo, mencionam-se os artigos 32 e 38 da referida Lei. O primeiro, prescreve a possibilidade de o poder concedente intervir na concessão, com o fim de assegurar a adequação na prestação do serviço, bem como o fiel cumprimento das normas contratuais, regulamentares e legais pertinentes. O segundo, dispõe sobre as consequências da inexecução total ou parcial do contrato pela concessionária ou permissionária, que poderá justificar, a critério do poder concedente, a declaração de caducidade da concessão ou permissão ou a aplicação das sanções contratuais.
Com aplicação subsidiária, tem-se a Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, que “estabelece normas básicas sobre o processo administrativo no âmbito da Administração Federal direta e indireta, visando, em especial, à proteção dos direitos dos administrados e ao melhor cumprimento dos fins da Administração” (artigo 1º). Inclusive, o artigo 68, além de reafirmar o devido processo legal no âmbito administrativo, prevê que as sanções terão natureza pecuniária ou consistirão em obrigação de fazer ou de não fazer.
Diante desse arcabouço jurídico, valendo-se de suas prerrogativas, a ANEEL editou a Resolução Normativa de nº 846, de 2019²¹, então objeto desse estudo, que aprovou os novos procedimentos, parâmetros e critérios para a imposição de penalidades aos agentes do setor de energia elétrica, e, ainda, dispõe sobre diretrizes gerais da fiscalização da ANEEL.
ITEM IV – BOAS PRÁTICAS REGULATÓRIAS E A FISCALIZAÇÃO RESPONSIVA
4.1. O INÍCIO DA AÇÃO FISCALIZADORA
Como mencionado, a ANEEL foi instituída por meio de comando legal, com a finalidade regular e fiscalizar a produção, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica, em conformidade com as políticas e diretrizes do governo federal.
Notadamente em relação à ação fiscalizadora da ANEEL, o Decreto de nº 2.335, de 6 de outubro de 1997, nos artigos 16 e 17, regulamenta a ação fiscalizadora da ANEEL, que apresenta com o objetivo de orientar os agentes do setor de energia elétrica, prevenir eventuais violações à lei e os contratos, bem como preservar à descentralização de atividades complementares aos Estados.
Sobre esse panorama, em 06 de outubro de 1998, foi instituída a Resolução de nº 318²², com o objetivo de introduzir os procedimentos para apuração de infrações e aplicação de penalidades aos agentes delegados.
Segundo Camilla de Andrade Gonçalves Fernandes, então integrante da Superintendência de Fiscalização dos Serviços de Geração da ANEEL, outras medidas administrativas foram adotadas pelo regulador, especialmente entre os anos de 1998 e 1999, como o estabelecimento de força-tarefa para inspeção das instalações e empresas prestadoras de serviços no setor elétrico brasileiro.
Além do objetivo de modelar a atividade de fiscalização em si, estabelecendo procedimentos para tanto, a presença ostensiva de servidores junto às empresas reguladas também cumpriu o papel de fazer a nova agência conhecida, de estabelecer os primeiros vínculos de relação entre agentes regulados e regulador e de inventariar o setor por meio de coleta de dados e informações. Conforme apontam as Prestações de Contas dos primeiros anos de atuação da agência, o alcance da ação fiscalizadora foi apurado principalmente em termos de quantidade de inspeções presenciais realizadas e a meta então estabelecida pela própria agência de fiscalizar 100% dos agentes delegados e instalações do setor foi cumprida²³.
Prevalecia a ideia de que o regulador deveria fiscalizar o maior número possível de agentes e instalações, no cumprimento de todas as normas regulatórias.
Na sequência, se identificada eventual não conformidade, com a sua classificação em um rol taxativo de modalidades de infração, era aplicada a penalidade ao agente, mediante a expedição de um Termo de Notificação – TN. E, em face desse, o agente em fiscalização tinha a faculdade de apresentar os esclarecimentos e documentos pertinentes, que, em cotejo com o relatório de fiscalização, eram submetidos para análise e deliberação da Superintendente da ANEEL responsável pela ação fiscalizadora.
Tal construção lastreava-se na crença de que as empresas reguladas agem como atores racionais que respondem predominantemente aos incentivos econômicos. Como consequência, o modelo tradicional de fiscalização do setor elétrico exercido pela ANEEL pode ser classificado como punitivo e foi estruturado seguindo ordenamento linear baseado em três etapas: programação, execução e julgamento (ver Figura 1), sem conexão estrutural com o processo de elaboração de regras e padrões²⁴.
Mesmo diante de uma evolução normativa, evidenciada diante da publicação da Resolução Normativa de nº 63, de 12 de maio de 2004²⁵, que revogou o regramento anterior, prevaleceu essa atuação eminentemente punitiva do regulador.
Nos anos que se seguiram, a agência evoluiu este modelo de forma incremental, criando ferramentas, aperfeiçoando formas de execução e lidando com as vantagens e desvantagens do arquétipo adotado. De forma resumida, no modelo tradicional, o principal critério de desempenho da fiscalização significava: fiscalizar mais (inspecionar o maior número possível de agentes e instalações); fiscalizar tudo (verificar o cumprimento de todas as normas) e punir muitas vezes (utilizar sanções administrativas como instrumento preferencial para persuasão dos agentes rumo ao cumprimento das normas). Tal modelo foi então consolidado e se tornou tradicional após 15 anos de prática²⁶.
Tratava-se, claramente, de uma abordagem mais contundente, caracterizando como um processo administrativo evidentemente punitivo, que não observava essencialmente os preceitos educativo e preventivo que deveriam nortear a conduta da ANEEL, nos termos dos mencionados artigos 16 e 17 do Decreto de nº 2.335, de 1997.
4.2. A NECESSIDADE DE MUDANÇA
O Estado e a sociedade passaram por diversas mudanças significativas nas últimas duas décadas. Hoje, vivenciamos uma nova era da informação, em que a tecnologia influencia a própria forma de encararmos a nossa realidade. As relações sociais, econômicas, políticas se tornaram ainda mais complexas.
Para o segmento de energia elétrica, essa situação não foi diferente, a exemplo das diversas leis especiais que foram publicadas neste período²⁷.
Esse cenário também suscitou uma nova reflexão na forma em que a ANEEL deveria encarar a sua atividade de fiscalização. Fato é que a ideia de uma atuação administrativa essencialmente punitiva mostrou-se obsoleta, clamando por mudanças pelos pares envolvidos.
Este contexto fez com que a expectativa das diversas partes interessadas (stakeholders) se modificasse substancialmente. O consumidor passou a exigir padrões mais elevados de qualidade dos serviços de energia elétrica nas dimensões de quantidade, continuidade, preço, segurança e prazo. As empresas reguladas passaram a requerer a diminuição de encargos decorrentes da atividade fiscalizatória e a reclamar da atuação meramente punitiva. O governo, por sua vez, qualificou sua exigência por alinhamento da atuação da agência com suas diretrizes e políticas públicas. Já os servidores, na condição de efetivos e com maturidade da prática adquirida, passaram a reavaliar e criticar com mais veemência os objetivos, metas e procedimentos de trabalho. Os órgãos de controle que, neste período, se fortaleceram notavelmente, ampliaram e aprofundaram suas auditorias, cobrando especialmente maiores níveis de eficiência e efetividade, transparência e responsabilização (accountability). E, por fim, a sociedade de forma geral passou a exigir acesso a informação, participação, tratamento de reclamações e reinvindicações²⁸.
Outros fatores também influenciaram a forma de pensar da ANEEL, como a manutenção de custos elevados, que não necessariamente se refletiam em uma melhora na qualidade do processo de fiscalização – o tratamento jurídico era basicamente o mesmo para empresas que não atendiam a legislação de regência, com aquelas que atendiam –. Inclusive, no aspecto da gestão, segundo a percepção de Camilla de Andrade Gonçalves Fernandes²⁹:
[…] o desempenho da atividade seguia sendo avaliado em termos de quantidade de ações executadas, medição, portanto, sem relação direta com o impacto gerado pela atividade. Com esse modelo mental tradicional, para melhoria de desempenho era necessário, portanto, aumentar-se a quantidade de fiscalizações realizadas. E, já que o setor elétrico cresceu consistentemente nos últimos anos, eram necessários esforços cada vez maiores para a garantia de presença da fiscalização em ciclos não muitos longos para cada empresa fiscalizada. Assim, o limite da relação “número de fiscais versus quantidade de instalações/agentes” foi superado para aplicação do modelo tradicional.
Todas essas conjunturas contribuíram para uma mudança significativa de entendimento. Assim, o regulador buscou um novo referencial a ser seguido.
4.3. OS PRINCÍPIOS DE BOAS PRÁTICAS REGULATÓRIAS DA OCDE
No mesmo período, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico – OCDE, foro intergovernamental, consagrado à ascensão de padrões convergentes em vários temas, notadamente na área econômica, publicou o Regulatory Enforcement and Inspections – Best Practice Principles for Regulatory Policy³º, que contribuiu para a formação de uma nova inteligência por parte dos prepostos da ANEEL.
O principal referencial teórico utilizado na reforma foi a publicação “Regulatory Enforcement and Inspections – Best Practice Principles for Regulatory Policy” de 2014 da OCDE, que apresentou onze princípios de boas práticas de fiscalização regulatória. O conteúdo deste material e de suas referências bibliográficas caíram como uma luva para a elaboração dos projetos de mudança. Além da completa aderência com a coletânea de artigos e livros estudados, o material ofereceu uma visão pragmática e aplicada dos conceitos teóricos abordados. Ademais, o material ofereceu à equipe alento e incentivo frente à necessidade da mudança, ao apontar que o desafio de adotar melhores práticas de fiscalização é atual e universal e que poucos países no mundo têm conduzido reformas significativas nesse campo, revelando um campo fértil para inovação na função de fiscalização no setor público³¹.
Conforme restou acima alocado, foram estabelecidos onze princípios de boas práticas regulatórias pela OCDE, a saber³²: (i) Execução baseada em evidência; (ii) Seletividade; (iii) Foco no risco e na proporcionalidade; (iv) Regulação responsiva; (v) Visão de longo prazo; (vi) Coordenação e consolidação; (vii) Governança transparente; (viii) Integração de informação; (ix) Processo claro e justo; (x) Promoção de conformidade; e (xi) Profissionalismo.
O conceito da execução baseada em evidência sugere que as fiscalizações e as inspeções regulatórias devem ser abalizadas em indícios. E, após, os dados coletados devem ser avaliados regularmente.
A seletividade orienta que, sempre que for possível, a promoção do cumprimento e aplicação das normas regulatórias devem ser deixadas às forças do mercado, do setor privado e da sociedade civil. O regulador não consegue se fazer presente em todo o momento, em todos os campos de sua competência. A ideia é otimizar a alocação de recursos de forma criteriosa. Em complemento, sempre buscando esta otimização, o princípio da integração de informações indica que tecnologias de informação e comunicação devem ser usadas para maximizar o foco em riscos, auxiliando na coordenação e o compartilhamento de informações.
A OCDE recomenda que a fiscalização deva ser baseada no risco e na proporcionalidade, ou seja, a assiduidade de inspeções e os recursos empregados devem ser proporcionais ao nível de risco. As ações devem ter como desígnio mitigar o risco representado pelas infrações.
O princípio da regulação responsiva, que será oportunamente pormenorizado, prescreve que as ações de fiscalização necessitam ser segmentadas em conformidade com o histórico e comportamento das empresas fiscalizadas.
Já o princípio de visão de longo prazo indica a necessidade de se estabelecer um planejamento fiscalizatório claro e estratégico de longo prazo.
Por sua vez, o princípio da coordenação e consolidação preconiza que as funções de inspeção devem ser coordenadas e, se imprescindível, consolidadas, uma vez que a diminuição do número de duplicações e sobreposições economiza recursos públicos. Os princípios de governança transparente e de profissionalismo já se faziam presentes no ordenamento jurídico pátrio e contemplam a ideia de transparência na autônima administrativa e decisória das agências reguladoras, bem como da expertise operacional.
Quanto mais clara e consistente for a definição da política regulatória pelos governos, maior a chance de que as agências reguladoras possam ser efetivamente responsabilizadas pelo poder político e pelos cidadãos. Isso terminará por aumentar a transparência e a credibilidade do sistema regulatório e do governo junto à sociedade, retroalimentando a política regulatória e ampliando sua eficiência. A OCDE valoriza e estimula a participação da sociedade no processo de construção das decisões e regulamentos necessários à regulação. Ela defende que tal participação confere legitimidade ao processo, além de aumentar a sua efetividade, por meio da identificação de fatores associados a sua implementação que fogem ao conhecimento dos reguladores ou não têm a devida atenção durante a formulação das propostas que vão à consulta pública³³.
Na sequência, nota-se o conceito do processo claro e justo, que no Brasil decorre do princípio do devido processo legal, então presente no artigo 5, inciso LIV, da Constituição Federal³⁴. Esse princípio sinaliza a necessidade de se estabelecer regras processuais claras e objetivas, com direitos e obrigações do regulador e do agente regulado.
Por fim, a promoção de conformidade, com o estabelecimento de instrumentos que auxiliem na persecução deste fim, como o desenvolvimento e publicação de notas e materiais de orientação, kits de ferramentas, listas de verificação, entre outros.
Sobre esses conceitos, em cotejo com a realidade brasileira, entende-se que os princípios de governança transparente, do processo claro e justo na ação fiscalizadora e do profissionalismo já se faziam presentes na Resolução Normativa de nº 63, de 2004.
Outros princípios foram incorporados pela Resolução Normativa de nº 846, de 11 de junho de 2019, como o da execução baseada em evidência, da seletividade, do foco no risco e da proporcionalidade, da regulação responsiva, da promoção de conformidade e da integração de informação.
E, por fim, alguns permanecem como desafios, sendo eles a visão de longo prazo e a coordenação e consolidação. Nesse ponto, ressalta-se que: (a) o estabelecimento de um plano estratégico claro e de longo prazo, que ultrapasse a ideia de uma Agenda Regulatória de dois ou três anos, irá contribuir para segurança jurídica do setor; (b) a própria estrutura organizacional da agência reguladora e o regime de contratação dos seus prepostos dificultam a observância do princípio da coordenação e consolidação no Brasil.
De todo modo, progredindo os oito anos de estudos, discussões e contribuições administrativas, acompanhadas de duas fases da Audiência Pública de nº 77/2011, foi publicada a Resolução Normativa de nº 846, de 2019, que sinalizou para os regulados uma atuação mais educativa e preventiva da ANEEL.
4.4. DA REGULAÇÃO RESPONSIVA
Segundo a OCDE, a regulamentação responsiva foi desenvolvida em 1992, por Ian Ayres e John Braithwaite, defendendo a ideia de segmentar os regulados no processo de fiscalização, ou seja, não tratar todos de uma única maneira ou todas as violações semelhantes exatamente da mesma forma. Pelo contrário, a fiscalização deve basear-se no comportamento geral dos sujeitos regulamentados, em seus históricos, em eventuais padrões de violações³⁵.
Esse princípio, além de reduzir a carga imposta aos regulados que já apresentam um desempenho satisfatório, em relação ao cumprimento das normas de regência, resultará na conformidade de maneira mais eficaz em relação aos demais. Isso, porque a publicitação dessa política fiscalizatória servirá como incentivo adicional aos regulados, uma vez que a conformidade garantirá não só um relacionamento positivo com o regulador, como uma supervisão menos onerosa.
Conforme a OCDE³⁶, as evidências demonstram que essa combinação entre a persuasão, como suporte à conformidade, e dissuasão, pela coerção, com a articulação adequada entre os dois, é o maio de abordagem mais eficaz no processo de fiscalização.
Em seu livro, Ian Ayres e John Braithwaite estruturaram essa ideia na seguinte pirâmide de execução estratégica – tradução não literal – (1992, p. 39)³⁷:
Figura 1 – Enforcement pyramid
Fonte: Responsive Regulation: Transcending the deregulation debate.
Refletindo para o cenário brasileiro, mostra-se oportuno destacar a pirâmide de fiscalização apresentada pela ANEEL, no âmbito do trabalho “Fiscalização em 3 níveis – aplicando o conceito de ‘diferenciação de risco regulatório’ na fiscalização de empreendimentos de geração de energia”³⁸, então defendido no IX Congresso Brasileiro de Regulação – 3ª ExpoABAR, realizado entre os dias 17 e 20 de agosto de 2015 em Brasília:
Fonte: ANEEL, no âmbito do trabalho “Fiscalização em 3 níveis – aplicando o conceito de ‘diferenciação de risco regulatório’ na fiscalização de empreendimentos de geração de energia”.
Desse modo, na base, estão alocados os agentes que anseiam à adequação regulatória, que “querem fazer a coisa certa”. Em princípio, neste primeiro nível da pirâmide, encontra-se a maior parte das empresas. Para o regulador, mostra-se adequado uma atuação mais simplificada, que minimize os ônus para a própria agência e para o regulado, como a elaboração de tutoriais e de recursos para esclarecimento de dúvidas.
Na sequência, no segundo nível da pirâmide, encontram-se os agentes que tentam, mas nem sempre têm sucesso no cumprimento da regulação. Nesse cenário, a atuação do regulador deverá ser baseada no caráter educativo da fiscalização – instruir e assistir –, como a utilização de avisos de melhoria, avisos verbais – sempre que possível e se tratando de violações menores –.
No terceiro nível da pirâmide estão os regulados que não querem cooperar, ou seja, não anseiam à adequação regulatória, eventualmente motivados por algum subterfúgio para maximizar os resultados. Por esse motivo, na ação fiscalizatória, a performance deverá ser mais incisiva do regulador, como a adoção de medidas coercitivas, tais como advertências e multas.
Por fim, no último nível da pirâmide, estão alocados a minoria dos agentes, aqueles predispostos, deliberadamente, ao não cumprimento regulatório. Pelo histórico, é possível observar que esses regulados já estão decididos a não cooperar. Assim, medidas de intervenção, revogação de autorização ou até mesmo a declaração de caducidade da concessão ou da permissão mostram-se mais adequadas na atuação do regulador.
Contrapondo a aplicação indeterminada desse princípio, mostra-se oportuno destacar as ponderações de Camilla de Andrade Gonçalves Fernandes, com referência ao entendimento manifestado pelo Melo da Silva.
Algumas críticas e aperfeiçoamentos têm sido apresentados desde a proposta da teoria, inclusive pelos próprios autores, conforme compilado por Melo da Silva (2017). Uma delas, bastante aplicável ao contexto do setor elétrico, é a de que quando já se possui uma avaliação muito clara e evidente a respeito do comportamento de empresas, que permita classifica-las nos níveis mais altos da pirâmide, a escalada de ações partindo-se de medidas mais brandas de persuasão não são as mais adequadas. Assim, a escalada de ações nem sempre é recomendável e, para a escolha da estratégia de atuação fiscalizatória mais eficaz e eficiente, deve-se diferenciar também o nível de risco das infrações, o grau de reincidência e severidade de danos causados pelas violações, além de se diferenciar violações de novos entrantes de violações de empresas antigas no mercado³⁹.
Não obstante, entende-se que essa abordagem baseada na regulamentação responsiva apresentou-se como um fator determinante na revogação da Resolução Normativa de nº 63, de 2004, em que predominava a fiscalização punitiva.
ITEM V – NOVO CONCEITO DE FISCALIZAÇÃO
5.1. A FISCALIZAÇÃO EM 3 NÍVEIS
Respaldados na ideia de que persuasão, como suporte à conformidade, e dissuasão, pela coerção, com a articulação adequada entre os dois, mostra-se mais eficaz no processo de fiscalização, a ANEEL desenvolveu um modelo próprio, então segmentado em três níveis.
Figura 3 – Modelo de Fiscalização em 3 Níveis
Fonte: ANEEL, no âmbito do trabalho “Fiscalização em 3 níveis – aplicando o conceito de ‘diferenciação de risco regulatório’ na fiscalização de empreendimentos de geração de energia”⁴º.
No primeiro nível, o de monitoramento, estão alocados todos os agentes do setor de energia elétrica. Assim, a ANEEL monitorará essas empresas, valendo-se de bases de dados e de indicadores de qualidade e desempenho. A partir dessa fiscalização, acompanhada de inteligência analítica, o regulador realizará um diagnóstico, de modo a identificar eventuais empreendimentos que apresentam um risco potencial para o setor. Além disso, o monitoramento dos agentes permitirá o estabelecimento de padrões de referência ou de qualidade para o setor.
No segundo nível, ou ação à distância, o universo de agentes mostra-se significativamente menor e contempla os empreendimentos selecionados por meio da análise preliminar de risco. Assim, para esses agentes, a fiscalização seguirá de forma mais minuciosa, com o exame pormenorizado de informações qualitativas detalhadas. Segundo o próprio regulador, nesse momento, mostra-se possível o surgimento de ocorrências em que a avaliação de risco inicial não se confirme, os denominados de “Falso Positivo”.
Por fim, no terceiro e último nível, nota-se a ação presencial do regulador em determinados agentes, para coletar evidências ou, ainda, inspecionar determinado tipo de fiscalização. Contudo, a inteligência desse modelo mostra que este tipo de atuação incisiva será realizado após as etapas anteriores, de forma residual. Inclusive, por esse motivo, com o exaurimento do diagnóstico das informações, a atuação in loco será mais direcionada e objetiva aos possíveis pontos de atenção.
Concluindo esse raciocínio, tem-se a apresentação do seguinte fluxograma, que contempla de uma forma estrutural os procedimentos e etapas que fazem parte desse modelo de fiscalização em três níveis:
Figura 4 – Fluxograma Geral das Etapas de Fiscalização em 3 Níveis
Fonte: ANEEL, no âmbito do trabalho “Fiscalização em 3 níveis – aplicando o conceito de ‘diferenciação de risco regulatório’ na fiscalização de empreendimentos de geração de energia”⁴¹.
Em complemento, no decorrer da fiscalização, é feito uma análise sobre a gravidade de eventuais não conformidades verificadas, bem como do histórico comportamental da empresa, no cumprimento das normas regulatórias.
Figura 5 – A aplicação da Metodologia
Fonte: ANEEL⁴²
Na sequência, delibera-se internamente se a fiscalização seguirá mediante a persuasão, via prevenção ou promoção de conformidade, ou para a dissuasão, via coerção, com a aplicação de eventuais penalidades.
Caso a estratégia escolhida seja a da prevenção/promoção de conformidade, são executadas ações como: publicação de relatórios com indicação da categoria de desempenho de cada empresa para o mercado e sociedade; emissão de alertas às empresas com desempenho inadequado e orientação de correção; e estabelecimento de planos de melhoria/resultado para empresas com desempenho insuficientes e riscos intermediários à qualidade da prestação dos serviços.
Caso as etapas de monitoramento e investigação indiquem alto risco e/ou comportamento não cooperativo da empresa frente às ações já realizadas de prevenção/promoção de conformidade, a ação fiscalizadora segue com caráter coercitivo. A depender da categoria da não conformidade/infração e também do comportamento histórico da empresa, podem ser aplicadas penalidades de advertência, multa pecuniária, suspensão, intervenção, revogação de outorgas, impedimento temporário de participação no mercado, atividades típicas da aplicação clássica do processo sancionador⁴³.
Entende-se que esse modelo otimizou a alocação de recursos de forma criteriosa pelo regulador, de acordo com uma análise prévia de risco. Inclusive, ante a atuação ativa e orientativa da ANEEL, com o estabelecimento de rotinas de fiscalização, contribuirá para a melhoria de desempenho na busca da conformidade regulatória e, assim, na própria qualidade na prestação dos serviços.
Os estudos de casos elaborados pela ANEEL, a seguir pormenorizados, demonstram que esse novo modelo de fiscalização se mostra efetiva para o setor.
5.2. ESTUDOS DE CASOS
No artigo desenvolvido pela Camilla de Andrade Gonçalves Fernandes, sobre a reforma do modelo tradicional de fiscalização do setor elétrico brasileiro, a Especialista em Regulação e Superintendente Adjunta de Fiscalização dos Serviços de Geração da ANEEL apresentou alguns estudos de casos, então efetuados no âmbito do regulador, que merecem o devido destaque no presente artigo.
Inicialmente, em relação ao índice de atendimento da obrigação de envio de informações sobre a implantação de novas usinas à ANEEL, a especialista descreve que a metodologia, então baseada em três níveis, mostrou-se evidentemente satisfatória, com incremento de quarenta e cinco pontos percentuais no desempenho dos regulados, em apenas dois anos.
Em agosto de 2015, na etapa do monitoramento foi verificado que 51% das empresas cumpriram com a obrigação de encaminhar as informações requeridas no prazo estabelecido, índice insatisfatório de conformidade. Baseando-se na nova estrutura, foi elaborado procedimento de fiscalização para orientação à atuação dos ficais com caráter fortemente preventivo e voltado à promoção da conformidade. O novo procedimento foi executado ao longo dos anos de 2015, 2016 e 2017, o que resultou nas seguintes medições de taxa de informações recebidas no prazo determinado: 69% em agosto de 2016 e 96% em agosto de 2017⁴⁴.
Inclusive, esclarece que esse resultado pode ser dividido em quarenta e um pontos percentuais decorrentes de mecanismos preventivos e persuasivos – como a implementação de guias, de suporte por telefone, de alertas automáticos via e-mail, entre outros –. E o restante, os quatro pontos percentuais, decorrentes de mecanismos dissuasivos (coerção), como o envio de notificação e aplicação de penalidades.
Figura 6 – Melhoria do nível de conformidade regulatória quanto à obrigação de envio de informações sobre a implantação de novas usinas à ANEEL.
Fonte: “A reforma do modelo de fiscalização do setor elétrico brasileiro” e a ANEEL, segundo a especialista.
Na sequência, a especialista relata um resultado expressivo no segmento de transmissão de energia, notadamente na identificação de causas de desligamentos forçados nas linhas de transmissão no país, com a incorporação dos princípios da OCDE da seletividade, do foco no risco e na proporcionalidade e da promoção de conformidade regulatória.
Após a realização de monitoramento e seleção de empresas com pior desempenho no tema, elas foram instadas a elaborar a pactuar planos de melhorias com a agência, a fim de melhorarem as taxas de identificação e solução de causas dos desligamentos forçados, por meio de correção de procedimentos de operação e manutenção, substituição de equipamentos, treinamento de equipes, investimentos, etc. Após a aplicação de mecanismos do novo modelo de fiscalização, verificou-se redução de 45% nos casos de não identificação das causas de desligamentos em linhas de transmissão entre 2014 e 2017. No ciclo de apuração 2014/2015, 29% dos desligamentos não tiveram causa identificada; no ciclo 2015/2016, 22%; e no ciclo 2016/2017, 16%⁴⁵.
Concluindo, aduz que esse trabalho poderá refletir, tanto na qualidade do serviço prestado ao consumidor final, como no próprio planejamento da operação, com o estabelecimento de um plano condizente de manutenção do sistema de transmissão.
Figura 7 – Redução da quantidade percentual de classificação de desligamentos forçados como “sem causa determinada” no sistema de transmissão de energia elétrica no Brasil.
Fonte: “A reforma do modelo de fiscalização do setor elétrico brasileiro” e a ANEEL, segundo a especialista.
Por fim, no segmento de distribuição de energia, resultados sensíveis também foram observados, propõe a especialista.
A partir de atividades de monitoramento de indicadores de desempenho, seleção de empresas com pior desempenho e estabelecimento de planos de resultados com metas definidas e acompanhadas com prestação de contas trimestrais da alta administração das concessionárias à alta administração da agência reguladora, pode-se constatar casos de empresas que responderam positivamente às estratégias de fiscalização segundo o modelo reformado⁴⁶.
Por esse motivo, empresas selecionadas, que se comprometeram e executaram atividades então defendidas pela ANEEL, tiveram seus indicadores de frequência e de duração de interrupções do fornecimento de energia reduzidos de 24% e 20%, respectivamente, entre os anos de 2014 e 2016 (FERNANDES, 2018, p. 21).
Figura 8 – Redução da frequência e duração de interrupção de fornecimento de energia no Distrito Federal (concessionária estatal) e no Estado de Pernambuco (concessionária privada) entre 2014 e 2016.
Fonte: “A reforma do modelo de fiscalização do setor elétrico brasileiro” e a ANEEL, segundo a especialista.
Todos esses estudos contribuíram para formação de um novo modelo de fiscalização no setor elétrico, então consolidado na Resolução Normativa de nº 846, de 2019.
5.3. A RESOLUÇÃO NORMATIVA DE Nº 846, DE 2019
De início, mostra-se oportuno destacar que, no âmbito do Processo Administrativo de nº 48500.006118/2009-83⁴⁷, o Sr. Romeu Donizete Rufino, na época Diretor-Geral da ANEEL, quando da manifestação do seu Voto, que concorreu para aprovação da minuta final da Resolução Normativa de nº 846, de 11 de junho de 2019, ponderou que:
13. É importante destacar que a norma resultante desse processo está alinhada com a evolução pela qual vem passando a estratégia de fiscalização adotada pela ANEEL, constituindo-se como seu elemento legitimador na busca por uma atuação responsiva. De fato, o escopo da norma extrapola o da Resolução Normativa nº 63/2004, tratando, além dos “procedimentos, parâmetros e critérios para a imposição de penalidades aos agentes do setor elétrico”, também das “diretrizes gerais da fiscalização da Agência”.
14. Tais diretrizes corroboram as funções orientativa e educativa da Fiscalização, bem como consolidam ferramentas de prevenção e correção de práticas irregulares, como o monitoramento e o estabelecimento de planos de resultados. Ainda, a norma prevê circunstâncias atenuantes para a penalidade de multa, que são aplicadas de acordo com os esforços empreendidos pelo agente para mitigar os efeitos danosos da infração cometida.
De fato, progredindo os anos de estudos, discussões e contribuições administrativas, acompanhadas de duas fases da Audiência Pública de nº 77/2011, foi publicada a supracitada Resolução, que aprovou os novos procedimentos, parâmetros e critérios para a imposição de penalidades aos agentes do setor de energia elétrica e dispõe sobre diretrizes gerais da fiscalização da Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL.
Não se trata, apenas, do estabelecimento de um novo rito a ser observado pelo regulador e pelos agentes regulados. Muito pelo contrário. Esse novo regramento concretiza um novo conceito de atuação do regulador, que será mais ativa e orientativa, o que poderá refletir em uma redução no número de multas e recursos administrativos, que muitas vezes resultam em disputas judiciais.
De início, o Capítulo I define o objetivo e a abrangência da Resolução, como a sua incidência sobre os concessionários, os permissionários e os autorizatários de serviços ou instalações de energia elétrica, excetuada a usina hidrelétrica Itaipu Binacional, por força do Tratado Brasil–Paraguai e as entidades responsáveis pela operação do sistema, pela comercialização de energia elétrica ou pela gestão de recursos provenientes de encargos setoriais.
Na sequência, o Capítulo II contempla as próprias diretrizes gerais do processo de fiscalização da ANEEL, com destaque à ressalva de que a “fiscalização visará, primordialmente, à educação e orientação dos agentes do setor de energia elétrica, à prevenção de condutas violadoras da lei, dos regulamentos e dos contratos” (artigo 2º).
Inclusive, no caput do artigo 3º e em seus incisos, tem-se o estabelecimento do próprio procedimento prévio de monitoramento e controle dos agentes, com o objetivo de subsidiar a ANEEL com dados ou informações relevantes, analisar o desempenho dos primeiros, prevenir práticas irregulares e estimular a melhoria contínua da prestação dos serviços de energia elétrica, atuar na busca da correção de práticas irregulares, entre outros.
Ainda como diretriz, o artigo 4º contempla a possibilidade de o regulador firmar planos de resultados com os agentes setoriais, para melhoria de desempenho, com base em evidências que apontem possíveis desconformidades com a prestação do serviço ou com o próprio equilíbrio econômico financeiro do instrumento de concessão ou permissão.
Basicamente, nesse capítulo, tem-se a afirmação dos princípios de boas práticas regulatórias convalidados pela OCDE, notadamente da execução baseada em evidência, a seletividade, a regulação responsiva, a promoção de conformidade e a integração de informação.
Em seguimento, o Capítulo III versa sobre as infrações e as penalidades. De início, o artigo 5º apresenta um rol taxativo de penalidades, a saber: advertência, multa, embargo de obras, interdição de instalações, obrigação de fazer, obrigação de não fazer, suspensão temporária de participação em licitações para obtenção de novas concessões, permissões ou autorizações, bem como impedimento de contratar com a ANEEL e de receber autorização para serviços e instalações de energia elétrica, revogação de autorização, intervenção para adequação do serviço público de energia elétrica e caducidade da concessão ou da permissão.
Como novidade, nota-se o estabelecimento de obrigação de fazer ou de não fazer, de forma alternativa ou concomitante à outra penalidade, como meio de inibir o cometimento de nova infração. Inclusive, o descumprimento poderá implicar em multa diária, conforme o porte do agente setorial ou a natureza da entidade.
Nesse ponto, não obstante o anseio do regulador em fortalecer o seu campo de atuação, há que asseverar que essa inovação jurídica não encontra respaldo no rol taxativo previsto no artigo 17 do Decreto de nº 2.335, de 1997, bem como na Lei de nº 9.427, de 1996, que instituiu a ANEEL e disciplinou o regime das concessões de serviços públicos de energia elétrica, o que poderá refletir em eventual discussão acerca da constitucionalidade e da legalidade dessa cominação, a despeito de uma possível aplicação subsidiária do artigo 68 da Lei de nº 9.784, de 1999⁴⁸.
Ainda no Capítulo III da Resolução Normativa de nº 846, de 2019, nos artigos subsequentes, as não conformidades são pormenorizadas, com as respectivas penalidades. Exemplo, segundo o artigo 8º, o agente que deixar de prestar informações aos consumidores ou usuários, quando solicitado ou conforme determinado nas disposições legais, regulamentares ou contratuais estará sujeito a penalidade de multa, na ordem de até 0,125% de sua Receita Operacional Líquida – ROL (interpretação conjunta dos artigos 8, 9 e 21).
Outra novidade é a divisão das infrações sujeitas a penalidade de multa em cinco grupos – e não mais em três, conforme estabelecia a Resolução Normativa de nº 63, de 2004 –.
O caput do artigo 21 prevê que base de cálculo para aplicação de multa será o valor da Receita Operacional Líquida – ROL ou o valor estimado da energia produzida nos casos de autoprodução e produção independente, ambos correspondentes aos doze meses anteriores à lavratura do Auto de Infração – AI. Apesar disso, o §6º do aludido artigo delineia que a base de cálculo da multa será calculada por segmento de atuação do agente – geração, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica –, no qual for identificada a infração, desde que esta possa ser associada a apenas um dos segmentos.
Desse modo, seguindo a ideia de se estabelecer uma análise prévia de risco, face uma atuação mais estratégica e segmentada do regulador, considerando os três níveis de fiscalização, a norma gradativa as infrações de acordo com a sua gravidade.
Com efeito, sobretudo em relação as infrações e as penalidades então previstas no capítulo em referência, mostra-se oportuno destacar que existe um embate acerca da extensão do poder normativo conferido às agências reguladoras, face a submissão cerrada ou não ao princípio da legalidade (artigo 5, inciso II, da Constituição Federal⁴⁹).
Para Thiago Marra, quando se trata do exercício do poder de polícia⁵º na restrição aos direitos dos regulados, como aos seus patrimônios e às suas liberdades, prevalece a sujeição da Administração Pública ao princípio da legalidade administrativa (2018, p. 537).
Em vista do princípio da legalidade administrativa e da consequente necessidade de previsão legal das sanções e das condutas infrativas que as ensejam, não é possível que essas medidas venham a ser criadas por ato administrativo nem por ato normativo da Administração. No entanto, como se disse anteriormente, essa lógica vale principalmente para as sanções baseadas no poder de polícia, poder extroverso do Estado na restrição da vida particular⁵¹.
Na mesma linha, Celso Antônio Bandeira de Mello defende que:
Logo, a Administração não poderá proibir ou impor comportamento algum a terceiro, salvo se estiver previamente embasada em determinada lei que lhe faculte proibir ou impor algo a quem quer que seja. Vale dizer, não lhe é possível expedir regulamento, instrução, regulação, portaria ou seja lá que ato for para coartar a liberdade dos administrados, salvo se em lei já existir delineada a contenção ou imposição que o ato administrado venha a minudenciar⁵².
Por outro lado, em matéria disciplinar ou contratual, não se mostra imprescindível o estabelecimento de lei em sentido formal para dispor sobre os tipos de infrações e as sanções então decorrentes. Contudo, a lei deverá atribuir à Administração Pública correspondente a competência para instituir as medidas punitivas (MARRARA, 2018, p. 538).
Sobre essas premissas, mostra-se legítima a atuação punitiva da ANEEL, à luz da Resolução Normativa de nº 846, de 11 de junho de 2019, desde que conformada pela ordem constitucional e legal vigentes.
Por sua vez, o Capítulo IV prevê os procedimentos em relação aos parâmetros e critérios para fixação do valor da multa, da ação fiscalizadora, do procedimento para aplicação de penalidades de competência das Superintendências de Fiscalização, do procedimento para aplicação de penalidades de competência da Diretoria da ANEEL ou do Poder Concedente, do recurso e do pagamento da multa.
Nesse capítulo, notam-se alguns pontos que merecem destaque.
De início, o caput do artigo 22 prevê que, “na fixação do valor das multas serão consideradas a abrangência, a gravidade, os danos resultantes para o serviço e para os usuários, a vantagem auferida e as circunstâncias agravantes e atenuantes da infração”. Todavia, o §5º posiciona que a aplicação da multa não afasta a obrigação de reparação aos consumidores ou usuários prejudicados.
Não obstante, o §6º do artigo 22 ainda possibilita à ANEEL, mesmo que excepcionalmente e de modo fundamentado, afastar metodologia de cálculo do valor base da multa, quando o resultado não atender aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade. Entende-se que, o eventual exercício desta faculdade, mesmo que de forma motivada pelo regulador, poderá promover a insegurança jurídica.
Os artigos 24 e 25 estabeleceram as circunstâncias agravantes e atenuantes, bem como os percentuais que em decorrência delas incidem sobre o valor base da multa. Em relação as atenuantes, preservou-se as ações tomadas pelo próprio agente infrator, que acarretem benefícios para as partes prejudicadas por sua conduta.
Ademais, inovando em relação a norma então revogada, o §2º, do artigo 38, situa que a renúncia expressa do recurso importará na redução de 25% (vinte e cinco por cento) no valor da multa aplicada, caso o infrator efetue o pagamento no prazo regulatório, vedado o parcelamento. No entanto, entende-se que esse parágrafo 2º relativiza a consagração da ampla defesa, ao contrapor um possível benefício econômico ao agente infrator ao próprio direito de recurso. E, ainda, impõe uma diferenciação no tratamento dos agentes, por impossibilitar o exercício pleno do contraditório no âmbito administrativo, bem como da possibilidade de parcelamento da dívida em até trinta e seis parcelas mensais e sucessivas (artigo 41).
Por fim, no Capítulo V, a Regulação trata de algumas disposições finais e transitórias, como o fato da norma entrar em vigor integralmente após seis meses de sua publicação, em 18.06.2019. E, ainda, que a Resolução em questão será objeto de Avaliação de Resultado Regulatório em até cinco anos após sua entrada em vigor.
Essa análise teve o objetivo de apresentar as principais mudanças induzidas pela Resolução Normativa de nº 846, de 2019, bem como situar este novo conceito de fiscalização introduzida pela ANEEL no cenário brasileiro. Afinal, a partir de então, toda a condutada do regulador no processo de fiscalização deverá ser revisitada e conduzida pelos supracitados preceitos, sob pena de deslegitimar o próprio ato administrativo, tornando nulo em sua própria essência.
ITEM VI – CONCLUSÃO
Na persecução dos interesses público e privado, a atividade regulatória exerce função de proeminência no setor elétrico, no anseio de se garantir a maior eficiência desse mercado regulado. Inclusive, as competências fiscalizatórias e sancionadoras da Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL são ferramentas contundentes dessa atuação.
Desse modo, o trabalho desenvolvido teve por pretensão fortalecer a frente de pesquisa relacionada ao novo processo de fiscalização da ANEEL, consolidado pela Resolução Normativa de nº 846, de 2019, que aprovou os novos procedimentos, parâmetros e critérios para a imposição de penalidades aos agentes do setor de energia elétrica e dispôs sobre as diretrizes gerais da fiscalização da agência.
Para tanto, avaliou-se o modelo inicial do processo de fiscalização da ANEEL⁵³, que perdurou por quase 20 anos, que tinha como caraterística uma abordagem mais incisiva no mercado, com a prática de um processo administrativo evidentemente punitivo, que não observava os preceitos educativo e orientativo previstos no artigo 16 Decreto de nº 2.335, de 1997. Prevalecia a ideia de que o regulador deveria fiscalizar o maior número possível de agentes e instalações, no cumprimento de todas as normas regulatórias. E, nas hipóteses de não conformidades, utilizar sanções administrativas (multas) como principal instrumento de persuasão ao cumprimento das normas.
Contudo, ao passar dos anos, com a evolução do Estado e da sociedade, esse modelo administrativo essencialmente punitivo mostrou-se obsoleto, clamando por mudanças pelos atores envolvidos.
No mesmo período, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico – OCDE publicou um trabalho com onze princípios de boas práticas regulatórias, que contribuíram para a formação de um novo conceito de regulação no Brasil.
Sendo assim, avaliou-se os princípios da OCDE que foram incorporados pelo regulador, como da execução baseada em evidência, da seletividade, do foco no risco e na proporcionalidade, da regulação responsiva, da promoção de conformidade e da integração de informação. Outros princípios já se faziam presentes, a exemplo dos princípios de governança transparente, do processo claro e justo na ação fiscalizadora e do profissionalismo. E, por fim, alguns permanecem como desafios, ante a própria realidade brasileira, sendo eles a visão de longo prazo e a coordenação e a consolidação.
Destacou-se, na sequência, o novo modelo trifásico de fiscalização apresentado pela ANEEL, então elaborado com base nos supracitados princípios da OCDE.
No primeiro nível, o de monitoramento, estão alocados todos os agentes do setor de energia elétrica. Assim, a ANEEL monitorará essas empresas, valendo-se de bases de dados e de indicadores de qualidade e desempenho. A partir dessa fiscalização, acompanhada de inteligência analítica, o regulador realizará um diagnóstico, de modo a identificar eventuais empreendimentos que apresentam um risco potencial para o setor. Além disso, o monitoramento dos agentes permitirá o estabelecimento de padrões de referência ou de qualidade para o setor.
No segundo nível, ou ação à distância, o universo de agentes mostra-se significativamente menor e contempla os empreendimentos selecionados por meio da análise preliminar de risco. Assim, para esses agentes, a fiscalização seguirá de forma mais minuciosa, com o exame pormenorizado de informações qualitativas detalhadas. Segundo o próprio regulador, nesse momento, mostra-se possível o surgimento de ocorrências em que a avaliação de risco inicial não se confirme, os denominados de “Falso Positivo”.
Por fim, no terceiro e último nível, nota-se a ação presencial do regulador em determinados agentes, para coletar evidências ou, ainda, inspecionar determinado tipo de fiscalização. Contudo, a inteligência desse modelo mostra que este tipo de atuação incisiva será realizado após as etapas anteriores, de forma residual. Inclusive, por esse motivo, com o exaurimento do diagnóstico das informações, a atuação in loco será mais direcionada e objetiva aos possíveis pontos de atenção.
Considerando os estudos de casos então apresentados e a expertise internacional da OCDE, entende-se que esse modelo trifásico otimizou a alocação de recursos de forma criteriosa pelo regulador, de acordo com uma análise prévia de risco.
Por outro lado, ante a atuação ativa e orientativa da ANEEL, com o estabelecimento de rotinas de fiscalização, pondera-se que esse novo modelo contribuirá para a melhoria de desempenho na busca da conformidade regulatória e, assim, na própria qualidade na prestação dos serviços. Além do mais, entende-se que essa estratégia trifásica de atuação poderá refletir em uma diminuição no contencioso administrativo e judicial do setor elétrico, atenuando os custos neste sentido, com o redirecionamento para outras prioridades.
Sobre essas premissas, o presente estudo contemplou uma análise da Resolução Normativa de nº 846, de 2019, que aprovou os novos procedimentos, parâmetros e critérios para a imposição de penalidades aos agentes do setor de energia elétrica e dispõe sobre diretrizes gerais da fiscalização da ANEEL.
Nesse exame, algumas novidades regulatórias foram apontadas, como o estabelecimento de diretrizes gerais do processo de fiscalização da ANEEL, com destaque à ressalva de que a “fiscalização visará, primordialmente, à educação e orientação dos agentes do setor de energia elétrica, à prevenção de condutas violadoras da lei, dos regulamentos e dos contratos” (artigo 2º).
Constatou-se que o Capítulo II da supracitada Resolução Normativa ratificou a implementação dos princípios de boas práticas regulatórias convalidados pela OCDE, notadamente da execução baseada em evidência, da seletividade, da regulação responsiva e da integração de informação.
Dentre outros pontos, destacou-se o embate acerca da extensão do poder normativo conferido à ANEEL, face a sua submissão cerrada ou não ao princípio da legalidade, sobretudo em relação as infrações e as penalidades previstas no Capítulo III da supracitada Resolução. Nessa senda, ainda foi objeto de estudo o estabelecimento de obrigação de fazer ou de não fazer – inovação regulatória –, de forma alternativa ou concomitante à outra penalidade, como meio de inibir o cometimento de nova infração.
Por esses motivos, entende-se que não se trata, apenas e tão somente, do estabelecimento de um novo rito a ser observado pelo regulador e pelos agentes regulados. Muito pelo contrário. Esse novo regramento concretiza um novo conceito de atuação do regulador, que será mais ativa e orientativa, o que poderá refletir em uma redução no número de multas e recursos administrativos, que muitas vezes resultam em disputas judiciais.
Portanto, a partir de então, toda a condutada do regulador no processo de fiscalização deverá ser revisitada e conduzida pelos supracitados preceitos, sob pena de deslegitimar o próprio ato administrativo, tornando nulo em sua própria essência.
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