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    Os advogados e a ‘licença para se retirar’

    13 de outubro de 2021, por Nestor Saragiotto, advogado e sócio do Tortoro, Madureira & Ragazzi Advogados

    A pandemia, que tarda a nos abandonar, inaugurou no Brasil o período de realização de audiências e sessões de julgamento colegiado telepresenciais, o que, de maneira geral, possibilitou o prosseguimento da atividade forense sem maiores percalços e permitiu que os advogados continuassem a exercer sua profissão, que o Judiciário persistisse na entrega da prestação jurisdicional e que às partes fosse destinado aquilo que o Estado-juiz considerasse justo e adequado (em tempos do “politicamente correto”, é prudente esclarecer, desde logo, que optou-se no texto pela eleição do gênero masculino como universal, em conformidade com a regra ainda em vigor na Língua Portuguesa, de forma que quando escrevo “advogado” refiro-me ao homem e à mulher, ao advogado e à advogada, enfim, a todos, todas e todxs…).

    Pois bem. Especificamente no que toca aos tribunais, pode-se dizer que as sessões telepresenciais encurtaram distâncias, reduziram despesas e democratizaram o acesso de muitos advogados à segunda instância. Se antes era necessário percorrer centenas de quilômetros, ou contratar um colega sediado próximo à corte, agora, ao advogado basta um computador conectado à internet, ou mesmo um simples telefone celular, para participar das sessões de julgamento e sustentar oralmente as razões de seu cliente. A facilidade de acesso ensejou um aumento significativo no número de inscrições para uso da tribuna e, consequentemente, um prolongamento na duração das sessões, não sendo raras as vezes em que o horário avançado interrompe os julgamentos quando ainda há inúmeros feitos pendentes de apreciação. Como se vê, o sistema virtual apresenta vantagens e desvantagens, que deverão ser proximamente sopesadas pelos tribunais, deliberando pela sua permanência, ou não, já que parece avizinhar-se o momento de retorno às sessões presenciais.

    Mas, ainda em relação às atividades telepresenciais, há um aspecto que me vem intrigando. Por força da área de atuação nacional de alguns de nossos clientes, frequento quotidianamente boa parte dos tribunais trabalhistas do país e observo que vem se espraiando entre os advogados de todos os quadrantes o costume de pedir licença para se retirar, tão logo findam suas sustentações orais. O colega usa a palavra, aguarda a proclamação do resultado e, ato contínuo, profere a frase inexorável: “Peço licença para me retirar”!

    Compreendo a intenção. Sei que além de demonstrar boa educação o advogado imagina estar cumprindo o preceito ético e a determinação legal de a todos tratar com respeito e urbanidade. Contudo, algumas atitudes ditadas por boas intenções individuais, sobretudo quando praticadas de forma usual e reiterada por um número expressivo de pessoas, podem causar efeitos indesejados no campo de atuação de toda uma categoria profissional, enfraquecendo-a.

    Refiro-me especificamente às prerrogativas do advogado, tão arduamente conquistadas. Mais do que simples direito, prerrogativa é dignidade, honra, regalia, privilégio, justificadamente conferidos à advocacia para que ela possa, com liberdade e altivez, exercer seu múnus público de salvaguardar o Estado democrático e os direitos do cidadão. O advogado é indispensável à administração da Justiça, por disposição constitucional, e no seu ministério privado presta serviço público e exerce função social. Defender e proteger as prerrogativas é a melhor forma de valorizar a advocacia, não se admitindo nesse aspecto nenhuma tergiversação. É por tudo isso que considero descabida a “licença para me retirar”, sem embargo do respeito a opiniões contrárias.

    Não é pecado mortal, mas nem por isso deve estar isenta de crítica. Sim, porque no rol das prerrogativas outorgadas ao advogado consta que ele pode ingressar livremente nas salas de sessões dos tribunais, ali permanecer e falar, sentado ou em pé, e retirar-se independentemente de licença (Lei nº 8906/1994, (EA), artigo 7º, VI, a, VII). Tais garantias não são gratuitas.

    Ajudam a compreender que não há hierarquia entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público (EA, artigo 6º), reforçam a ideia de igualdade entre eles, contribuem para conferir elevação à posição da advocacia, tornando menos penoso, portanto, o cumprimento de sua missão de defensora da democracia, dos direitos humanos e garantias fundamentais, da cidadania, da moralidade, da Justiça e da paz social. Tenho observado com atenção a reação dos desembargadores presidentes das turmas ou câmaras diante dos indesejados pedidos de licença para deixar o recinto: invariavelmente ignoram tais manifestações (iura novit curia…) como se elas não tivessem sido formuladas, limitando-se a agradecer a presença e a se despedir dos advogados, não sem algum constrangimento.

    Não vai aqui, é claro, nenhum estímulo à afronta ou à incivilidade, longe disso, mesmo porque quem deseja ser respeitado deve, primeiro, respeitar. A razão dessa rápida provocação é apenas lembrar que nenhum tipo de subserviência, mesmo que involuntária, bem-intencionada e sequer imaginada, se coaduna com o exercício da advocacia, inafastavelmente pautada pela inviolabilidade, liberdade, autonomia e independência funcional. A intenção aqui é apenas auxiliar nos esforços de conscientização da classe, sobretudo dos advogados mais jovens, quanto à importância de não se permitir ataque às prerrogativas, que são do advogado, mas também do cidadão.

    Aos olhos de Ruy, a profissão de advogado tem uma dignidade quase sacerdotal. Não há outra de mesmo status e já nos bastam as atuais dificuldades para exercê-la; não criemos novas, contribuindo, mesmo que inocentemente, para diminuir sua proeminência. É preciso ter a exata compreensão de que as prerrogativas constituem instrumento poderoso de proteção da sociedade e nenhuma delas é negociável. Se o estimado colega ainda entender que deve continuar “pedindo licença para se retirar”, fique inteiramente à vontade. Mas, que não precisa, não precisa. Nem deve…

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