Recuperação Judicial, coexistência dos princípios e a urgente necessidade de privilegiar a boa-fé contratual para preservação da segurança jurídica e econômica no país
A pandemia, a crise econômica e a instabilidade política no país são realidades que deveriam fazer com que os pedidos de recuperações judiciais fossem analisados com base na segurança jurídica.
O Brasil está entre os maiores países fomentadores da economia mundial, principalmente pela sua riqueza natural, sendo realizados inúmeros negócios jurídicos diariamente.
As recuperações judiciais do país tiveram aumento de janeiro para fevereiro, crescimento de 83,7%, segundo dados divulgados pela Serasa Experian e o número de requerimentos de fevereiro também é 11% maior em comparação ao mesmo mês do último ano¹.
Obviamente, o instituto da recuperação judicial deveria ser o instrumento para estímulo da economia. No entanto, é fato notório que apenas poucas empresas brasileiras conseguem se reerguer utilizando do instituto da recuperação judicial exposto na Lei 11.101/05.
Em tese, as recentes alterações da Lei 11.101/2005 (Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária), através da Lei 14.112/2020, vieram para modernizar o sistema de Falências e Recuperações Judiciais e para facilitar o soerguimento das empresas, consolidando os princípios da preservação da empresa e a proteção aos trabalhadores, muito embora a grande maioria não se recuperem.
É premente que se deixe claro, não obstante a alteração da Lei, que dentre os princípios que regem o processo de falência e recuperação judicial, o artigo 47 da Lei 11.101/05 prevê que os interesses dos credores também devem ser preservados.
A nova legislação, entretanto, deixou de manifestar expressamente sobre a impossibilidade de supressão de garantias regularmente constituídas entre devedores e credores, o que permite a manutenção de interpretações equivocadas e a possibilidade de imposição da vontade unilateral do devedor no plano de recuperação, bem como a decisão em assembleia sobre direitos de terceiros, sem anuência expressa dos mesmos.
Temos percebido, em tempos tão incertos, que não são raras decisões judiciais que desconsideram qualquer pacificação nas relações e, principalmente, intervêm nas relações entre particulares, olvidando do possível reflexo ao fomento das atividades comerciais e econômicas.
Por conseguinte, inadequadamente, ganha força no Poder Judiciário a tendência de aceitar que as empresas em recuperação judicial apresentem planos de recuperação com a previsão de supressão de garantias (reais, fiduciárias e fidejussórias) prestadas pelos devedores em favor dos credores que participam do processo de recuperação.
A corrente jurisprudencial que defende a possibilidade de supressão de garantias no processo de soerguimento empresarial sustenta que a vontade imposta no plano de recuperação do devedor e na maioria dos credores na votação da Assembleia de Credores deve prevalecer, ainda que exista voto contrário do titular da garantia. São esses entendimentos que deram azo aos julgamentos nos REsp. 1.532.943/MT, 1.700.487/MT, 1.863.842/RS, 1.850.287/SP, todos da Terceira Turma do STJ e que utilizam a parte final do § 2º do artigo 49 da Lei como fundamento: “As obrigações anteriores à recuperação judicial observarão as condições originalmente contratadas ou definidas em lei, inclusive no que diz respeito aos encargos, salvo se de modo diverso ficar estabelecido no plano de recuperação judicial.”
Em que pesem entendimentos que permitam a supressão de garantias regularmente constituídas em favor dos credores, o Poder Judiciário não analisou, até o momento, que o cerne da questão consiste na necessidade de coexistência com os princípios vigentes em nosso ordenamento jurídico.
Mesmo diante da significância atribuída ao Artigo 47 da Lei 11.101/05, não há uma ordem hierárquica no referido dispositivo da Lei e os interesses de todos os credores devem ser atendidos de forma harmônica com outros princípios que regem as relações jurídicas.
No STJ, já temos o entendimento de que a natureza do plano de recuperação judicial é contratual (REsp 1631762/SP, Relatora Min. Nancy Andrighi). Portanto, considerado como contrato, o princípio da boa-fé contratual é um dever imposto às partes e a todos os credores no momento de apresentação do plano de recuperação e no momento da votação em Assembleia de Credores, que deve coabitar com outros princípios do processo de recuperação judicial, uma vez que, se credor e devedor estão renegociando novas condições contratuais, ainda que sob a égide da Lei de Recuperação, devem agir com lealdade e correção durante todas as etapas de um contrato – tratativas, execução e conclusão do contrato, sem a interferência de outros credores em garantias licitamente contratadas.
Ainda que exista a previsão do § 2º do artigo 49 da Lei, as regras a serem observadas para casos de negociação dos contratos empresariais são as do Código Civil. Portanto, a liberdade de contratar e de reformular o vínculo contratual, esteja a empresa em recuperação ou não, ficam sujeitas à observância dos princípios contratuais, tais como a boa-fé objetiva e a função social do contrato, sendo apenas excepcionais as limitações ao exercício da autonomia e intervenção judicial nas garantias regularmente constituídas nas hipóteses de lesão ou onerosidade excessiva.
Incisiva, no particular, é a Súmula n. 581/STJ, a qual não permite qualquer cláusula no plano de recuperação que impeça o credor buscar seu crédito dos garantidores, coobrigados e obrigados de regresso, mesmo que o seu devedor esteja em recuperação judicial.
Ademais, a própria Lei de Recuperação Judicial não permite a supressão de garantia que beneficia o credor pessoalmente, a exemplo do que é permitido ao credor com garantia real (§1º do art.50).
Assim, em homenagem à boa-fé contratual, a concordância com a supressão de garantias, deve constar dos autos de modo expresso, isto é, diretamente firmada pelo titular ou pelo voto confirmatório do respectivo titular da garantia na assembleia geral de credores.
Neste diapasão, qualquer plano de recuperação apresentado pelos devedores e que preveja a supressão de garantias não se mostra pautado no princípio da boa-fé contratual e, mais, se mostra verdadeira imposição maliciosa do devedor durante da relação jurídica, especialmente em relação as garantias regularmente constituídas antes do ajuizamento da recuperação judicial.
Não podemos olvidar que princípio da preservação da empresa é norteador da recuperação judicial, mas decisões contrárias à lei e ao contratado, especialmente quando permitem a supressão de garantias sem anuência do credor, criam desproporções aos contratantes, mais ainda quando não há preservação de empresa no país, já que maioria dos pedidos são convolados em Falência!
Especificamente em relação as garantias fidejussórias, não há qualquer premissa lógica para supressão de tais garantias e relacionada ao princípio da preservação da empresa em processo de recuperação judicial. Terceiros, sócios coobrigados, avalistas e fiadores, via de regra, possuem personalidade jurídica diversa da empresa em recuperação e o prosseguimento da cobrança contra garantidores não sujeitos aos efeitos da recuperação judicial não interfere no soerguimento econômico da empresa, mesmo porque o patrimônio pessoal dos garantidores, avalistas, fiadores não se confunde com o da empresa.
Ainda, o art. 59, caput, da Lei de Recuperação, que não sofreu qualquer modificação pela Lei 14.112/2020, prevê expressamente que o plano de recuperação implica novação dos créditos, mas sem prejuízo das garantias, em consonância ao §1º do art.50, que exige a aprovação expressa do credor para fins de supressão, alienação e substituição das garantias.
Por outro lado, não nos parece correto que o voto da maioria nas Assembleias de Credores possa dispor sobre direitos alheios, especialmente garantias de terceiros. Além de clara ofensa à boa-fé contratual, podemos lembrar do dito popular: “o seu direito acaba onde começa o dos outros”.
Os direitos e obrigações resultantes de ajustes de vontades vinculam apenas os contratantes. O terceiro interferente numa relação contratual fica sujeito à responsabilização civil, nos termos dos artigos 186, 187, 927 e 942 do Código Civil.
Portanto, a atuação de outros credores, favoravelmente a exclusão de garantias de outro credor e que possam importar em prejuízo na recuperação do crédito, representa ato passível de ser configurado como ato ilícito.
Não podemos esquecer ainda que, além da necessidade de aplicação da boa-fé contratual na elaboração e votação de um plano de recuperação, temos a recente promulgação da Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019), em especial, a previsão do “princípio da intervenção mínima do Estado”, que incluiu o parágrafo único do artigo 421-A do Código Civil: “Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.”
A intervenção em garantias contratuais no processo de recuperação cria inseguranças nas relações empresariais, impondo condições comerciais não contratadas pelas partes e que, via de regra, não se mostram práticas para o soerguimento das empresas.
Sem perceber, decisões que importem na intervenção das garantias regularmente constituídas nas relações comerciais gerarão um ciclo interminável pedidos de Recuperação Judicial, não somente para grandes empresas, mas também para aquele pequeno empresário que acreditava que sua relação contratual fosse cumprida e adimplida.
Importante ressaltar que a democracia deve ser aplicada na sociedade, mas nas relações contratuais precisa de muita cautela em sua aplicação, sob pena de ferir o Artigo 170 da Constituição Federal.
Aqui cabe um questionamento que devemos fazer antes de qualquer análise e tomada de decisão: como interferir em uma garantia concedida por uma empresa para um credor que exerce o seu livre exercício da atividade econômica que lhe compete? Além disso, cabe a um grupo de credores que não participaram da relação jurídica originária entre o credor e devedor interferir na supressão de garantia”.
A empresa em recuperação judicial deve ser protegida, mas também os credores, geralmente bancos e empresas fornecedoras, merecem o mesmo tratamento, especialmente conjugando princípios da boa-fé contratual na formulação do Plano de Recuperação.
Indubitavelmente, o Poder Judiciário não pode negligenciar aspectos fundamentais dos contratos empresariais, especialmente quando o Plano de Recuperação Judicial é verdadeiro contrato e deve ser pautado na boa-fé. Considerar tão somente suposta preservação da empresa, sem atentar que é necessário preservar o mercado e um ambiente seguro para a consecução dos contratos, é um contrassenso ao necessário ambiente de negociação no âmbito da Recuperação Judicial.
O princípio da preservação da empresa deve ser adotado com ponderações, sempre observados outros princípios que regem as relações empresariais, ou seja, analisando não somente o prejuízo à empresa em recuperação, mas outros aspectos diretos que podem influenciar na economia e na segurança jurídica.
Por conseguinte, decisões que interferem ou permitem a interferência da maioria na Assembleia de Credores em garantias contratuais, sem autorização do titular do direito, importam em grave enfraquecimento da concessão de crédito e das relações contratuais, pois permitem que os planos de recuperação apresentados na grande maioria dos processos não sejam pautados na boa-fé objetiva.
Não somente para instituições financeiras, como também para todas as empresas e pessoas físicas fornecedoras de produtos e serviços, a possibilidade de interferência nas garantias contratuais no processo de recuperação judicial do devedor importará em insegurança nas relações contratuais futuras.
Em suma, permitir a supressão das garantias sem a anuência dos credores titulares, mesmo com a votação favorável em assembleia geral, não tem previsão legal e, principalmente, afronta o princípio da boa-fé objetiva, que deve coexistir com os princípios que regem o processo de recuperação judicial.