Sequestro Internacional no Brasil e a legitimidade da voz da criança
29 de Maio de 2021, Por Cassio Namur, sócio do Tortoro, Madureira & Ragazzi Advogados.
Tema recorrente no mundo, o sequestro internacional de crianças, em geral cometido pelos pais, não foge da supervisão das autoridades brasileiras.
O Brasil possui um amplo sistema legislativo que supostamente protege as crianças e adolescentes. Prova disso, está na qualidade de Carta Maior do Estado, a Constituição Federal, que ao disciplinar sobre esta matéria no “Capítulo VII DaFamília, da Criança do Adolescente, do Jovem e do Idoso”, em seu artigo 227 estabelece:
“Art. 227 É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao jovem, com absoluta prioridade o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. ”
Segundo a Constituição Federal, o cuidado com a criança e com o jovem é um dever que cabe a todos, não somente à família, incluindo o Estado e demais cidadãos, que devem zelar para os seus direitos serem observados, assim como as disposições de guarda e demais prerrogativas correlatas sejam cumpridas.
Neste ponto vale relembrar a existência de excelentes dispositivos legais no Brasil para proteção ao público referido neste artigo. Em especial, destaco o Estatuto da Criança de do Adolescente, Lei n° 8.069, de 13/07/1990 (“ECA”), atualizada ao longo dos anos, um dos mais completos do mundo. Tendo como parâmetro as diretrizes constitucionais, o ECA estabeleceu normas com essa intenção em seus artigos 3º e 4º:
“Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Parágrafo único. Os direitos enunciados nesta Lei aplicam-se a todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem. ”
“Art 4° É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:
a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;
b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;
c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;
d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude. ”
Diante deste cenário, é possível concluir – do ponto de vista legal – que as regras nacionais são completas, abrangentes e condizentes com a realidade do país.
Nesse sentido, os dispositivos legais mencionados do Estatuto têm por escopo reproduzir não apenas a Constituição Federal, mas também o que está previsto na Declaração de Princípios da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 20/11/1989, ratificada pelo Brasil em 26/01/1990, por meio do Decreto Legislativo nº 28, de 14/09/1990, vindo a ser promulgada pelo Decreto Presidencial nº 99.710, de 21/11/1990. Todo esse compilado que recordo aqui, já evidencia a preocupação do Brasil no intento de atender aos interesses dos vulneráveis em questão.
Mas, essa é uma breve introdução para adentrarmos ao tema mencionado no título: sequestro internacional das crianças e adolescentes. Segundo a Convenção de Haia #28 de 1980, em vigor no exterior e desde 01/12/1983, esse conceito é definido sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças como a transferência ilícita ou a retenção indevida em país diferente daquele em que a criança detinha sua residência habitual, sem o consentimento de um dos genitores, responsáveis legais ou autorização judicial.
O Brasil ratificou a Convenção muitos anos após sua criação. O depósito do instrumento de adesão ocorreu em 19/10/1999 e o Decreto Presidencial de Promulgação nº 3.413 é de 14/04/2000.
A referida Convenção abrange crianças e adolescentes, porquanto em seu artigo 4º prevê a proteção para faixa etária de até 16 anos. Vale lembrar que a descrição legal brasileira estabelece como crianças, os cidadãos com até 12 anos de idade incompletos e adolescentes aqueles que têm entre 12 e 18 anos, conforme previsto no art. 2º do ECA. Ressalto que a partir deste excerto, passarei a adotar a palavra “crianças” para tratar de ambos.
Os dois principais objetivos do acordo da Haia estão definidos em seu artigo 1º: assegurar o retorno imediato dos vulneráveis ilicitamente transferidos para quaisquer Estados Contratantes da Convenção ou neles retidos indevidamente e, ainda, fazer respeitar entre os Estados Contratantes os direitos de guarda e de visita.
Para resolver essa situação dramática e solicitar a volta da criança à sua residência habitual ou corrigir um caso de retenção, é necessário que o acontecimento tenha ocorrido há menos de 1 ano (Artigo 12 da Convenção). A título informativo, recebo ocasionalmente consultas de pais que procuram notícias sobre seus filhos “sequestrados”, depois desse período, o que infelizmente significa que a Convenção não mais pode ser invocada e aplicada. Nestes casos, os pais terão de recorrer a acordos ou buscar o Judiciário, pelas vias ordinárias, a fim de valer os seus direitos e os de seus descendentes.
A restituição precisa ser imediata, sendo que as autoridades judiciais ou administrativas devem tomar uma decisão no prazo de 6 semanas a contar da data da apresentação do pedido (Artigo 11), o que significa uma resolução sem demora, conforme previsto no artigo 12 da Convenção. Se este prazo for ultrapassado, o que é recorrente, a Autoridade Central precisa justificar as razões do atraso.
Existem inúmeros motivos em que o sequestro internacional de crianças ocorre, como a violência doméstica, física ou psíquica. Ou ainda situação de guerra, e ultimamente até atos de terrorismo podem vir a ser considerados como justificativa em determinadas situações. Todavia, em um considerável número de casos, os genitores ou responsáveis legais não chegam a um consenso mais sobre a vida em comum com seu cônjuge ou parceiro. E esse tipo de situação acaba por impossibilitar o convívio de ambas as partes com os filhos como forma de retaliação ou até mesmo vingança. Contudo, é preciso reforçar que não se pode generalizar ou flexibilizar as exceções legais, nem desrespeitar o direito de visita dos pais ou daqueles que detenham a guarda ou poder parental.
Aqui cabe destacar a gravidade de impedir o contato da criança com um dos genitores ou responsável por sua guarda e garantir no mínimo o direito a esse convívio, para não utilizar a expressão “visita”. Muitos pais ou guardiões o fazem, talvez inconscientes das consequências que tal ação pode causar aos filhos ou crianças sob guarda. Afastá-las do seu lar, entorno social e escolar é uma decisão muito extrema e prejudicial. E não pode haver atitude complacente com essa escolha.
Já é senso comum o convívio das crianças com seus pais ou guardiões como necessário para melhor formação da personalidade das pessoas adultas, claro com exceções dos casos em que a coabitação seja impossível de tal forma que prejudica o desenvolvimento do vulnerável. Para isso, a Convenção é um veículo eficaz entre os países aderentes. O artigo 6º dela estabelece que cada Estado Contratante designará uma Autoridade Central encarregada do cumprimento das obrigações previstas no referido regulamento da Haia. Cabendo a essa tomar todas as providências para criança retornar o mais rapidamente possível ao país de sua residência de origem ou a fim de estabelecer o direito de visita abruptamente desrespeitado.
Para tornar isso possível, existe a Autoridade Central que é um organismo interno nacional responsável pela cooperação jurídica com outros estados e organizações estrangeiras. Ela recebe, analisa, adequa, transmite e dá seguimento às solicitações de colaboração internacional, além de representar o Estado requerente – inclusive judicialmente – se comprovados os requisitos para tanto. É certo, todavia, que a decisão final cabe ao Juiz Natural, ao Juízo onde aquela criança resida habitualmente.
No Brasil, a tramitação de casos de subtração de crianças ou de reestabelecimento de direito de guarda ou visita é atualmente de responsabilidade da Autoridade Central Administrativa Federal (“ACAF”). Trata-se de órgão vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, através da Secretaria Nacional de Justiça e sob a gestão do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional. Quando esses processos são judicializados, será a Advocacia-Geral da União (“AGU”) o órgão de representação processual da União Federal em juízo que irá tratar dos interesses do Estado estrangeiro solicitante da cooperação jurídica. Os seus integrantes são extremamente preparados e qualificados, de sorte que com isso o Brasil presta um enorme serviço, de alta qualidade e competência para os Requerentes estrangeiros e sem qualquer custo processual. O Brasil não fez reserva quanto às despesas de participação de advogado, consultor jurídico ou no tocante ao pagamento de custos judiciais, consoante previsto no artigo 42, quando se refere ao artigo 26 da Convenção. Como já é de conhecimento de todos, a tramitação do processo ocorrerá na Justiça Federal, pois a competência é assim definida pelo artigo 109, inciso III, da Constituição, quando as causas são fundadas em tratado ou contrato da União com Estado estrangeiro ou organismo internacional.
O ponto fundamental e na minha opinião também determinante, ou não, para o retorno da criança ao seu país de origem ou restabelecimento do direito de guarda/vista é relativo à oitiva da criança pelo Juiz. Toda criança tem assegurado seu direito fundamental de convívio com ambos os pais. Exigir que a escolha seja feita entre algum de seus genitores em detrimento do outro, é talvez, a mais grave agressão que se pode perpetrar contra o superior interesse dela. É mais que um dever de ouvir, a criança tem o direito de ser ouvida. Assim, vale frisar o disposto no artigo 12 da Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança, que estabelece:
“Art. 12 Os Estados Partes assegurarão à criança que estiver capacitada a formular seus próprios juízos o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados com a criança, levando-se devidamente em consideração essas opiniões, em função da idade e maturidade da criança”.
Assim, garantindo para a parte mais interessada, a oportunidade de ter seu relato considerado em todo processo judicial ou administrativo e sem jamais solicitar uma suposta preferência quanto ao genitor que deve conviver. A oitiva da criança, caso a maturidade psicológica o recomende, há de ser deliberada com a estrita finalidade de definir as providências de retorno ao Estado de residência habitual, bem como, as medidas a serem provisoriamente adotadas para regular o convívio com ambos os pais ou detentores da guarda, até que se viabilize a cognição do caso pelo juiz natural. Nesse sentido, Pietro Perlingieri nos ensina, que “o interesse do menor é identificado como a obtenção de uma autonomia pessoal e de juízo e pode concretizar-se também na possibilidade de exprimir escolhas e propostas alternativas que possam ter relação com os mais diversos setores, dos interesses culturais àqueles políticos e afetivos, desde que seja salvaguardada a sua integridade psicofísica e o global crescimento da sua personalidade.”¹
No Brasil, a oitiva da criança possui caráter complementar e normalmente ocorre a partir dos 12 anos. Em outras jurisdições, como a da Espanha, por exemplo, se permite a partir dos 8 anos. Todavia, o importante é possibilitar a oportunidade de ela ser escutada em qualquer processo de audiência judicial ou administrativa. Tanto que o artigo 20 da Convenção estabelece que:
“Art. 20 O retorno da criança de acordo com as disposições contidas no Artigo 12° poderá ser recusado quando não for compatível com os princípios fundamentais do Estado requerido com relação à proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais”.
Nota-se, portanto, que os relatos podem também ser um argumento de defesa para o não traslado ao país de residência habitual e, nesse caso, se faz necessária até para a criança eventualmente manifestar a sua objeção ao retorno. A Convenção não prevê justificativas das crianças baseadas, por exemplo, em questões como adaptação à escola ou outro argumento que se refira ao seu pretenso bem-estar. A objeção deve tratar de questões relevantes, como a alienação parental, contínuas agressões físicas ou psíquicas, cometidas pelos responsáveis ou genitores que permaneceram no local de sua residência habitual.
Nesses casos quando não houver acordo, caberá à Autoridade Central solicitar ao juiz que a criança possa se manifestar e o mesmo, munido com as informações sobre a situação daquele caso em específico tem o poder para deliberar, segundo o melhor interesse da criança. Mas, é preciso cautela para não haver confusão com o desejo do vulnerável, considerando que nem sempre há maturidade o suficiente para decidir. A partir daí o trabalho dos auxiliares profissionais do juízo como, por exemplo, os psicólogos, faz toda diferença e deve ser acionado. Também é recomendável que a oitiva seja realizada em ambiente neutro, para evitar qualquer tipo de trauma, em conformidade com as regras processuais da legislação nacional, bem como, por meio de um profissional tecnicamente capacitado, para o cumprimento das normas na produção de perícia psicológica.
Segundo dados da ACAF (restrita aos casos em que foi demandada), somente em 2020 – primeiro ano da pandemia de COVID-19 – foram registrados 103 casos (66 ativos e 37 passivos), incluindo subtração e visitas. Dentre esse total, foram reportados 90 casos de subtração (57 ativos e 33 passivos), ou seja, o Brasil demandou mais como país requerente. Relativamente à solicitação de vistas, houve 13 casos (9 ativos e 4 passivos). Neste mesmo ano, também foram concluídas 122 ocorrências: 96 de subtração (66 ativos e 30 passivos) e 26 de solicitação de visitas (18 ativos e 8 passivos).
Entre 2016 e 2019, houve 509 casos iniciados (2016: 102/ 2017: 109/ 2018: 124 e 2019: 174), uma média de pouco mais de 127 por ano. Porém, é importante observar que em quase todos os anos os casos ativos superaram os passivos, exceto em 2016. Relativamente àqueles encerrados entre 2016 e 2020, foram 402 (2016: 122/ 2017: 73/2018: 88 e 2019: 119), apresentando na média de 100 casos por ano, menor que 2020.
Curioso é que em casos passivos nos períodos mencionados, com exceção de 2019, a maioria encerrou-se por acordo ou ato voluntário, em detrimento de decisão judicial. Todos esses números também demonstram que as situações relativas a sequestro internacional de crianças são significativamente baixos, considerando que o Poder Judiciário contabilizou, em 2019, entre os assuntos mais demandados no primeiro grau de jurisdição: 1.135.599 casos (3,79% do total de processos), na área de Direito Civil – Família/Alimentos, de acordo com o relatório “Justiça em Números 2020”², do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Diante de todos os dados e informações apresentadas no presente artigo, é possível afirmar que a previsão legal existe, porquanto o Brasil ratificou e aderiu à Convenção Internacional dos Direitos da Criança. E é óbvia a necessidade de respeitarmos e cumprirmos estas regras também para esclarecer ao mundo que o país visa o melhor interesse da criança. Mas, é preciso cuidado, porque na maioria das vezes a voz da criança – seja de alguém que esteja na infância ou na adolescência – não recebe a devida importância para que o magistrado possa constituir plenamente a sua convicção e tomar a melhor decisão para o futuro de um ser humano ainda em fase de formação e que merece um porvir promissor.
http://www.jota.info/opiniao-e-analise/sequestro-internaional-brasil-crianca-29052021