Tutela Coletiva: aspectos materiais e processuais”. Estudos em homenagem ao Prof. Sebastião Sérgio da Silveira.” Coordenadores: Paulo José Freire Teotônio e Ricardo dos Reis Silveira. Tema: “O Princípio da congruência e a efetividade das decisões no processo coletivo brasileiro”
Abril de 2022, por Prof. Dr. Lucas de Souza Lehfeld, Prof. Dr. Zaiden Geraige Neto e Arnaldo Rodrigues Neto
1. Introdução
As últimas décadas trouxeram inúmeras inovações e transformações que afetaram intimamente toda a sociedade e, principalmente, a forma como são vistos os conflitos em massa. Novas economias surgiram ao longo do século XX, de igual forma globalizantes e que, necessariamente, exigiram uma nova atitude da sociedade preocupada com o interesse de todos.
Embora tal evolução tenha ocorrido de maneira intensa e imediata no seio da coletividade, como era de se esperar, tal rapidez não se deu no campo do ordenamento legal. Os instrumentos e mecanismos disponíveis a época eram desprovidos de eficiência em relação aos interesses da coletividade, surgindo, a partir do ano de 1970, movimentos (sociais e públicos) efetivos para a defesa e proteção desses direitos.
A partir de então, de maneira embrionária, deu-se início ao surgimento de um microssistema de direitos coletivos, que garantia que os processos fossem mais efetivos. Validamente, a concepção de que o processo se justifica por intermédio da atividade jurisdicional desde que esteja voltado a sua atividade-fim de pacificação social, se torna cada vez mais presente quando tem sua análise realizada sob a ótica da tutela coletiva.
Contudo, a evolução do instituto do direito coletivo se fez e ainda se faz necessária, levando o legislador, num contexto mais recente, a construir um microssistema que se apresente mais adequado às peculiaridades da tutela coletiva. Tal imersão, voltada ao ordenamento jurídico brasileiro, transitou pelas três “ondas” do movimento de Mauro Cappelletti e Bryant Garth, culminando com a última (enfoque de acesso à justiça).
Destarte, para se avaliar a efetividade do acesso à Justiça, é necessário que o processo coletivo formalmente assessore o aplicador do Direito no atingimento da finalidade concreta de determinada medida judicial, fornecendo meios técnicos para que o direito alcançado por sentença apresente o seu lado factível e concreto na vida das pessoas e não fique apenas no plano das ideias, sem que haja uma consequência prática efetiva tanto aos lesados como, principalmente, ao causador do dano.
A tutela coletiva, quando acertadamente representada e instruída, proporciona Justiça. Que, por sua vez, eleva o espírito das reflexões necessárias ao desenvolvimento pleno e contínuo do instituto, instrumento de inconteste importância de acesso à justiça pois ratifica vários princípios essenciais de um Estado Democrático de Direito (celeridade, segurança processual e, principalmente, da igualdade) além de trazer o senso de justiça ao seio da sociedade com a cultura do pleno acesso a uma resposta jurisdicional efetiva.
Contudo, não basta uma boa legislação aplicável e situações que se adaptem ao conceito de direitos coletivos. De que bastam boas leis se o resultado não é justo e eficaz?
Assim, o presente estudo concentra-se na chamada terceira onda para o acesso à Justiça, com enfoque na relativização do princípio da congruência ou adstrição haja vista ser, s.m.j., um caminho ao atingimento dos objetivos de se ter um processo coletivo sincrético e, principalmente, efetivo.
2. O acesso efetivo à justiça
O estudo voltado ao acesso à Justiça exige que se façam alguns esclarecimentos prévios, em especial relacionado ao fato de que não diz respeito apenas ao Poder Judiciário, aliás, não é eficaz possuir acesso sem ter a justa solução à demanda.
Antes de qualquer pretensão, deve-se compreender efetividade como o efetivo direito de receber, respeitadas todas as prerrogativas, uma resposta jurisdicional justa e, principalmente, que possa representar algo efetivo no plano concreto, no seio da sociedade.
A inquietação com o tema foi abordada pelos juristas Mauro Cappelletti e Bryant Garth, que asseveram que definir “acesso à Justiça” não é uma coisa simples. Os juristas tratam dos dois grandes objetivos do ordenamento jurídico, quais sejam: i) a possibilidade de os cidadãos procurarem o Estado a fim de que suas demandas sejam atendidas e ii) que a resposta do Estado seja individual e socialmente justa.
O chamado movimento de “acesso à Justiça”, com vasto conteúdo para o desenvolvimento de pesquisas nos mais amplos campos das ciências sociais, encontra no Direito um novo enfoque teórico (CAPELLETTI, 1994) voltado a combater “o formalismo jurídico”, enquanto sistema que identifica o direito sob a perspectiva exclusivamente normativa – e se preconiza a inserção de outros componentes reais, como os sujeitos, as instituições e os processos, tudo em sintonia com a realidade e o contexto social (CAPPELLETTI, 1994).
Tal visão teórica do acesso à justiça representa substancial mudança do pensamento unidimensional e formalista para outra compreensão do Direito, uma concepção tridimensional que considera não apenas as normas jurídicas de maneira isolada, mas sim conjugadas com fatos e valores, trazendo a sua moderna significação.
Quanto as dificuldades do “acesso à justiça”, é possível interpretá-las por diferentes óticas. De modo geral, o termo tem sido associado à de justiça social, cujo adjetivo surge como resposta coletiva ao caráter individualista do pensamento tradicional que, muitas vezes, contribuiu para o aumento das crises sociais e econômicas no transcorrer do século XIX.
A rigor, a discussão não é tão recente. Platão e Aristóteles já traziam a ideia universal de justiça profundamente ligada com a de justiça social embora sem o uso do adjetivo, pois entendiam que uma coisa era inerente a outra. Como referência histórica, o primeiro registro de uso da expressão “justiça social” é atribuído ao Papa Pio XI:
[…] ideia de que todo ser humano tem direito a sua parte nos bens materiais existentes e produzidos, e que sua repetição deve ser pautada pelas normas do bem comum, uma vez que a realidade estava a demonstrar que as riquezas eram inconvenientemente repartidas, pois um pequeno número de ricos concentrava os bens diante de uma multidão de miseráveis. (VERONESE, 1997).
A igreja católica passou, então, a incorporar essa noção social a partir de 1931 e posteriormente, a adotar expressamente a locução “justiça social” em seus documentos pontifícios o que contribuiu para a popularização do termo, levando-o a diversos movimentos da sociedade e, consequentemente seus ordenamentos jurídicos, como se houvesse harmonia semântica. De toda forma, é certo afirmar que a justiça social “é uma categoria jurídico-político-sociológica sobre a qual não há, ainda, um compartilhar comum” (PASOLDI, 2013).
Independentemente da falta de universalidade, é evidente a correlação entre o objeto da justiça social e a questão social. Situações como o problema do trabalho humano, desde a Rerum Novarum, estão presentes na doutrina católica como chave da questão social.
Em sentido restrito, a expressão representa o aspecto dogmático do acesso à tutela jurisdicional, ou seja, a garantia efetiva do acesso ao Poder Judiciário mediante uma demanda inserta em um universo formal e instrumental do processo voltado a composição de litígios.
E, por fim, tem-se a visão integralista onde o acesso à justiça admite um caráter mais coerente, não apenas ao conciliar-se com a teoria dos direitos fundamentais, mas, principalmente, com os objetivos globais do processo (jurídicos, políticos e sociais). Diante disso, é possível afirmar que acessar à justiça é acessar ao Direito:
[…] Vale dizer, a uma ordem jurídica justa (= inimiga dos desequilíbrios e destituída de presunção de igualdade), conhecida (= social e individualmente reconhecida) e implementável (= efetiva), contemplando e combinando, a um só tempo, um rol apropriado de direitos, acesso aos tribunais, acesso aos mecanismos alternativos (principalmente os preventivos), estando os sujeitos titulares plenamente conscientes de seus direitos e habilitados, material e psicologicamente, a exercê-los, mediante superação das barreiras objetivas e subjetivas (…) e, nessa última acepção dilatada que acesso à justiça significa acesso ao poder” (BENJAMIN, 1995).
Em clássica obra sobre acesso à justiça, Mauro Cappelletti e Bryant Garth esclarecem que o problema pode ser visualizado por meio de três “ondas”. A primeira onda preocupar-se em garantir efetiva e universal assistência judiciária; a segunda onda, também conhecida como a “coletivização do processo”, propõe uma adequada reprodução dos interesses coletivos lato sensu, que abrangem os interesses difusos, coletivos (stricto sensu) e individuais homogêneos; a terceira onda (também denominada de “enfoque do acesso à Justiça” pelos autores), é mais abrangente pois representa a conjunção de vários fatores a serem analisados que, consequentemente, levarão ao aperfeiçoamento dos meios de solução dos conflitos sociais.
Da conjunção de fatores externada na terceira e última onda, nascem novos mecanismos judiciais para, acima de tudo, fomentar a celeridade ao processo, como os juizados especiais, a possibilidade das tutelas de urgência, procedimentos específicos, como também outros institutos de soluções alternativas de conflitos (arbitragem, mediação, conciliação etc.)
Desse modo, surge um novo modo de compreender o acesso à justiça, através da qual se torna necessária e obrigatória a valoração da ciência jurídica processual, com o efetivo estudo de seus objetos de acordo com o contexto político, social e econômico. Isso, indubitavelmente demandará dos operadores do direito “recurso constante a outras ciências, inclusive a estatística, que lhe possibilitarão uma melhor reflexão sobre a expansão e complexidade dos novos litígios para, a partir daí, buscar alternativas de solução desses conflitos” (MARINONI, 1993).
Kazuo Watabane in Francisco Barros Dias (1996), explica que o acesso à justiça representa não somente o “acesso a um processo justo, o acesso ao devido processo legal”, mas principalmente um meio de se garantir o acesso em si:
Um processo justo, o acesso ao devido processo legal, a uma Justiça imparcial; a uma Justiça igual, contraditória, dialética, cooperatória, que ponha à disposição das partes todos os instrumentos e os meios necessários que lhes possibilitem, concretamente, sustentarem suas razões, produzirem suas provas, influírem sobre a formação do convencimento do Juiz. (DIAS, 1996, p. 212).
De outra senda, em sentido integral, o acesso à justiça adota outros significados como o de acesso à informação e orientação jurídica como também dos possíveis meios hábeis para resolução de conflitos, mas de maneira alternativa, sucedâneos do exercício da cidadania em busca de uma ordem jurídica justa. Assim, busca-se, com a efetiva participação de todos, o bem comum por intermédio do processo, resultando no paradigma da cidadania responsável:
[…] responsável pela sua história, a do país, a da coletividade. Nascido de uma necessidade que trouxe à consciência da modernidade o sentido democrático do discurso, ou seja, o desejo instituinte de tomar a palavra, e ser escutado. É necessário, portanto, que também a jurisdição seja pensada com vários escopos, possibilitando o surgir do processo como instrumento de realização do poder que tem vários fins (DIAS, 1996, p.212).
Como exemplo de experiência bem-sucedida, o direito canadense demonstrou que uma das soluções que apresentou efetivos resultados nos últimos anos se baseou na facilitação do acesso ao poder judiciário, pautando-se em duas ideias centrais: a criação de métodos e sistemas acessíveis aos cidadãos e que seja apto a produzir seus resultados individuais de maneira justa no seio da sociedade. Nicole L’Heureux (1993) salienta que os juizados especiais e as chamadas ações coletivas em sentido amplo são consequências positivas concretas da congruência de tais ideias fundamentais para se alcançar o propósito do acesso à justiça.
Contudo, voltando-se aos objetivos do presente estudo, deve-se retomar o enfoque “terceira onda” ou “enfoque de acesso à justiça” referido por Cappelletti, pois envolve a advocacia, judicial ou extrajudicial, quer seja por advogados particulares ou por defensores públicos, indo muito mais além, pois coloca as suas atenções no conjunto universal de instituições e estruturas, indivíduos e procedimentos empregados para processos que se voltam a resolver os problemas inerentes às sociedade moderna. Com efeito, busca-se, na visão dos autores, conciliar as técnicas das duas primeiras ondas de reforma e tratá-las como somente algumas de uma série de possibilidades para aperfeiçoar o acesso à justiça. Uma questão de utilidade e principalmente necessidade em nossa sociedade atual.
3. A Efetividade do resultado: as sentenças nas ações coletivas
Marinoni, Arenhart e Mitidiero (2015), afirmam a respeito da filosofia das ações coletivas que “a sociedade moderna caracteriza-se por uma profunda alteração no quadro dos direitos e na sua forma de atuação”.
De fato, a tutela dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, protegidas sob o domínio das chamadas “ondas renovatórias”, preconizadas por Mauro Cappelletti e Bryan Garth (1998), serviu como uma revolução na sistemática de processos do Brasil, já que o modelo processual antigo, com caráter individual, patrimonial e ressarcitório não é mais suficiente para solucionar os conflitos sociais,
Surge, assim, a relevância de reformular os esquemas relativos aos processos, de forma que sejam capazes de responder aos interesses contemporâneos.
Diante de tais necessidades e novas perspectivas rumo a uma tutela coletiva, encontra-se o “processo coletivo”, influenciado pelas class action norte-americanas, procurando, por meio de uma proteção jurídica diferida, o atendimento a direitos de toda a coletividade (difusos), de uma classe de pessoas ligadas por uma relação jurídica de base (coletivos) ou mesmo de um grupo unido por uma situação de fato (individuais homogêneos), no entanto, priorizando o viés menos patrimonial, preventivo, que possuísse um resultado capaz de atingir uma execução específica, sem pautar-se em perdas e danos.
Assim, com a evolução do direito coletivo em amplo aspecto, os princípios do acesso à tutela jurisdicional, da efetividade e da celeridade processual tornam-se dogmas voltados a solucionar os conflitos massificados, característicos da sociedade atual, para que o cuidado dispensado às discussões envolvendo direitos coletivos, por qualquer de suas espécies, volte-se obrigatoriamente à busca de maior eficácia na solução de tais problemas, cada vez mais evidentes e presentes em nosso cotidiano.
Com efeito, pode-se dizer que a efetividade do direito encontra correspondência com o princípio constitucional do acesso à tutela jurisdicional que, na lição de Luiz Guilherme Marinoni, tem a seguinte conotação:
(…) quer dizer acesso a um processo justo, a garantia a uma justiça imparcial, que não só possibilite a participação efetiva e adequada das partes no processo jurisdicional, mas que também permita a efetividade da tutela dos direitos, consideradas as diferentes posições sociais e as específicas situações de direito substancial. Acesso à justiça significa, ainda, acesso à informação e à orientação jurídica e a todos os meios alternativos de composição de conflitos MARINONI, 1993, p.28).
Adotando o mesmo silogismo, Luiz Rodrigues Wambier (s/d) a respeito da necessidade imediata de se garantir efetividade às decisões judiciais:
(…) contemporaneamente a garantia constitucional de acesso à tutela jurisdicional do Estado significa direito de acesso à efetiva tutela jurisdicional, isto é, direito de obter do Estado tutela jurisdicional capaz de promover a concretização de seus comandos, do modo como previstos no plano do direito material.
Já quanto ao acesso à tutela jurisdicional, nota-se que o processo coletivo pode ser visto por diversas óticas. A primeira refere-se a possibilidade do exame pelo Poder Judiciário de lesões ou ameaças de lesões a direitos sem que haja titulares determinados, como os chamados direitos fundamentais de terceira geração ou dimensão.
Sob outra vertente, como explica Antônio Gidi:
(…) examinando a experiência das class actions no direito norte americano, as ações coletivas asseguram o acesso à tutela jurisdicional de pretensões que, de outra forma, dificilmente chegariam ao Poder Judiciário, como os casos em que o indivíduo sofre um prejuízo financeiro reduzido, não se sentindo estimulado, pelo dispêndio de tempo e dinheiro, a recorrer ao Judiciário (2007, p. 31).
Outro ponto de extrema importância pragmática diz respeito a economia processual, igualmente extraordinário aos processos coletivos. Embora tal princípio admita o acesso ao Judiciário de anseios que, por razões peculiares próprias não seriam objeto de apreciação, possibilita que diversas ações individuais repetitivas, sob a mesma discussão, sejam supridas por uma única Ação Coletiva. Evidente que há tanto ganho econômico na contenção de despesas com o acesso à justiça como também se evita que interpretações divergentes sobre um mesmo tema ocorram, auxiliando sobremaneira na uniformização das decisões judiciais.
Diante disso, no plano das ideias, torna-se tarefa fácil concluir que a estrutura do microssistema do processo coletivo apresenta imensurável avanço na defesa dos direitos ou interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, servindo para resolver inúmeros problemas decorrentes de uma sociedade de massa, tal qual a que vivemos.
Todavia, de que vale um ordenamento jurídico coeso, instrumental, efetivo e funcional, dotado de um direito processual plenamente satisfatório se, no aspecto prático, de resultado, a coletividade não visualiza a completa concreção dos mandamentos contidos na sentença, gerando desconfiança aos cidadãos lesados e, pior, a pecha da impunidade ao causador do dano?
Neste sentido, sem a pretensão de esgotar o tema, o presente estudo volta-se a análise do princípio do dispositivo ou da congruência, em especial aos conceitos técnicos que permitam concluir pela sua flexibilização ou relativização quando aplicado às demandas coletivas haja vista que há um bem maior em jogo, hierarquicamente superior se analisado sob o aspecto do resultado final.
4. A aplicação do Princípio da Congruência em ações coletivas
Inicialmente para se falar sobre o princípio da congruência especificamente aplicado às ações coletivas, necessário se faz trazer o conceito técnico de sentença. Assim, segundo preconizado por Marinoni, Arenhart e Mitidiero (2017), a sentença pode ser entendida como sendo o “ato do juiz que, resolvendo ou não o mérito da causa (arts. 203, 485 e 497), define-a, gerando em regra preclusão para o juiz (art. 507, ressalvadas as hipóteses do art. 495), assinalando ainda o fim da atividade de conhecimento no 1º grau de jurisdição”.
Em outros termos, a decisão judicial é a decorrência do exercício do direito de ação, constituindo o ato processual judicial mais relevante, de compor a lide, capaz de pacificar o conflito, o que fará ao declarar o direito que já existe e formar a norma concreta de conduta, respeitando os princípios aplicáveis, dentre eles o princípio da congruência (FARQUI, 2019).
Deste modo, é relevante tratar que inexiste posição de consenso na doutrina e no judiciário quanto a terminologia a ser utilizada na equivalência entre a sentença e os elementos que identificam a ação. Contudo, dada a origem técnica do termo, o emprego da “congruência” acaba sendo mais adotado tanto pela doutrina brasileira, quanto pela doutrina estrangeira, pois, afeiçoa-se à geometria, podendo, já a partir disso, constatar que o seu próprio teor remete à ideia de correspondência perfeita. Desta forma, conquanto não exista o emprego expresso dessa nomenclatura por nosso ordenamento pátrio, adotar-se-á o vocábulo mais comumente praticado.
Em relação ao cerne central, o princípio da congruência encontra nos princípios do dispositivo, do contraditório e da demanda suas linhas mestras centrais. De tal forma que, por força desse último, em linhas gerais, caberá ao Juiz decidir somente sobre aquilo que foi posto em juízo pela parte ativa, atuando como contorno à atuação do Estado-Juiz, evitando que, uma vez exorbitando a sua esfera de competência com a prática de atos discricionários na seara privada, tal magistrado acabe por cercear a liberdade individual dos envolvidos e, mais, acabe por cometer arbitrariedades afetas a todo regime totalitário/autoritarista.
De outra senda, é estreme de dúvidas que o dever de congruência se restringe tão somente as decisões com resolução de mérito, mas não a sua aplicação às tutelas condenatórias. O dever de congruência pode, de igual forma, atingir as sentenças e decisões de mérito declaratórias, mandamentais, constitutivas e executivas lato sensu. A obrigatória correlação abrange, inclusive, os elementos identificadores da ação (e não somente o pedido), de modo que deve a sentença guardar tríplice identidade com a demanda. Assim, a necessidade de congruência alcança os elementos objetivos (pedido e causa de pedir) e subjetivos (partes) (FARQUI, 2019).
Como visto, a congruência exigida da sentença deve alcançar todos os elementos da lide, ou seja, as partes, a causa de pedir e o pedido. No que concerne ao objetivo do presente trabalho, há maior enfoque no pedido.
Com efeito, a sentença ou decisão de mérito deve ser proferida pelo Magistrado dentro dos limites do pedido, cabendo a ele interpretá-lo de maneira lógica e sistêmica, jamais isoladamente, para que, ao final, a providência jurisdicional atenda efetivamente à realização do direito (tutela específica), sem que isso consista na interferência indevida na seara de direitos do sujeito passivo da ação. Assim, o princípio da congruência é um dever que tem por objetivo principal evitar atuações “ex officio” do Estado-Juiz e, em contrapartida, necessariamente deverá sempre considerar a compreensão escorreita daquilo que está sendo pedido, para não incorrer na negativa de Jurisdição.
Em outros termos, só será incongruente a sentença ou decisão de mérito que não atenda ao pedido mediato, bem como aquela que se distancie da providência jurisdicional apta a resultar na efetiva satisfação do direito. Não diferindo do entendimento esposado pelo Superior Tribunal de Justiça em seus julgados, conforme de depreende dos exemplos a seguir: a) AgRg no REsp 737.069/RJ, onde restou evidenciado que a decisão que interpreta de forma ampla o pedido formulado pelas partes não viola os artigos 128 e 460 CPC, pois o pedido é o que se pretende com o início do processo; igualmente, b) nos EDCl no REsp 1.460.403/PR, o STJ entendeu que não há violação ao princípio da congruência externa, quando se há a prevalência de interpretação lógico-sistemática da exordial; e, por fim, c) no REsp 1.355.574/SE, que assim decidiu, ressaltando o seu posicionamento jurisprudencial sobre o tema:
De acordo com a jurisprudência do STJ, não há ofensa ao princípio da congruência ou da adstrição quando o juiz promove uma interpretação lógico-sistemática dos pedidos deduzidos, ainda que não expressamente formulados pela parte autora. Assim, não há se falar em provimento extra petita, pois a pretensão foi deferida nos moldes em que requerida judicialmente, haja vista que, dentre os critérios utilizados pela parte autora para deduzir o pleito reparatório, encontram-se o descaso do agente agressor, a prática reincidente e o caráter inibitório da penalidade… (STJ, REsp 1355574/SE, Rel. Ministra DIVA MALERBI, 2ª TURMA – SEGUNDA TURMA, DJe 23/08/2016)
Tecidas tais considerações, essenciais para a correta compreensão do princípio da congruência, a sua falta sob a ótica da doutrina tradicional, implicará em sentença “extra petita”, “ultra petita” ou “citra petita” que, como regra, serão nulas, dada a existência de vício substancial.
Candido Rangel Dinamarco (2017) defende que tal nulidade é, regra geral, relativa: “em caso de falta de correlação entre a sentença e a demanda, essa nulidade substancial só é pronunciada pelo Tribunal se o pedir a parte prejudicada e na medida do que for necessário para observar a exigência legal de correlação”.
Pois bem, a congruência de igual forma aplicada às ações individuais, também se apresenta às ações coletivas, inclusive às ações civis públicas: “A ação coletiva também está sujeita à observância do princípio da congruência, segundo o qual o juiz deve decidir a lide dentro dos limites do pedido” (LEYSER, 2007).
Desse modo, Zavascki (2017) assevera que nas ações civis públicas, a base do pedido resultará, a depender do caso, na outorga da tutela jurisdicional geral ou específica, líquida, ilíquida, condenatória, declaratória, constitutiva mandamental ou executiva, frente à sentença que concorde com o que foi postulado.
Ainda que o princípio da adstrição esteja arraigado em nosso ordenamento jurídico, podendo ser aplicado tanto às demandas individuais quanto ao processo coletivo, há de se ressaltar a importância dos direitos aqui tutelados, dada a sua natureza. As ações coletivas são dotadas de relevância social, mesmo que presumida, que leva à condição da indisponibilidade do direito e, por conseguinte, atua de maneira limitadora a seara de liberdade do legitimado coletivo ao elaborar o pedido exordial.
Com efeito, na ação civil pública, o legitimado ativo deve buscar à medida que melhor proteja o bem da vida que almeja tutelar, respeitando sempre a ordem prioritária contida no cerne da criação da Lei de Ação Civil Pública, que consiste na prevenção, reparação e, ao final como medida extrema e conclusiva, no ressarcimento – tudo isso sem que haja a discricionariedade para dispor do interesse em litígio.
Assim, o Ministério Público não poderá, em ação civil pública, diante de dano ambiental, requerer uma indenização pecuniária como pena substitutiva da recomposição do dano, diferente do que ocorre nas ações individuais, em que o autor pode preferir a compensação à resposta reparatória.
Tais elementos levam a conclusão de que o:
Juiz tem, nas ações civis públicas, mesmo que formulado pedido determinado, considerando a inafastável necessidade de interpretar o pedido à luz do interesse que fundamenta a demanda e diante do todo da postulação, maior liberdade quanto à adoção das medidas que se mostrarem pertinentes à satisfação do direito (ZAVASCKI, 2017, p. 39).
Esses elementos levam não somente a possibilidade já existente no ordenamento jurídico de se aceitar providencias diversas da solicitada nas sentenças e nas decisões de mérito quando há o reconhecimento da exigibilidade de obrigação de fazer/não fazer e dar, mas inclusive à possibilidade de se flexibilizar tal dever de congruência em detrimento do resultado prático efetivo, pautando-se na natureza do provimento jurisdicional e no chamado pedido mediato quando necessário, para que o resultado em seu feitio mais abrangente (justo e efetivo) seja alcançado.
Adriano Caldeira (2006) coaduna com o mesmo pensamento ao defender a possibilidade de se relativizar o princípio da congruência, pois “nas demandas coletivas, é possível perceber que tais limites serão inevitavelmente flexibilizados, permitindo ao juiz fugir daqueles lindes traçados pelo pedido apresentado originalmente pelas mãos do autor”.
Contudo, a perspectiva de se atingir uma tutela mais efetiva e justa, de maneira alguma, consiste em conceder integral liberdade judicial por ocasião da prolatação das sentenças (mérito) nas ações civis públicas, porque, como já abordado, o princípio da congruência também se aplica, sendo imperioso, portanto, que o Juiz esteja atento aos limites da lide, traçados pelo demandante, inclusive em relação ao pedido. Contudo, “tais limites podem sofrer variações ao longo do processo, sem que com isso se caracterize uma decisão nula” (CALDEIRA, 2006, p.179).
Logo, o Juiz ao apreciar o pedido judicial nas ações civis públicas deve se ater ao fato de que a vontade exordial necessariamente envolve a tutela íntegra e efetiva do direito difuso ou coletivo ameaçado ou lesado, levando, como consequência a concluir que o legitimado coletivo buscou a medida mais apropriada para a satisfação do direito posto em deslinde, respeitando, obrigatoriamente, a ordem de preferência entre as tutelas concretas (preventiva, reparatória e ressarcitória) dispostas em nosso ordenamento jurídico.
A título de exemplificação, no contexto acima, pode o legitimado ativo diante de um dano ambiental narrado, requerer uma mera indenização, por perceber que o dano já se consolidou e não é crível a recomposição da área prejudicada. Contudo, se ao longo da cognição probatória, novos elementos identificados (após a realização de perícia técnica, p. ex., ao constatar que parte da área ainda não foi atingida pelo dano, não obstante seja iminente e que, mesmo em relação à área atingida, pode acontecer a recomposição) levam a outra conclusão meritória, sem que isso consista em afronta ao princípio da congruência, pois o magistrado estaria buscando a decisão mais correta para a concreção do direito em deslinde.
Na hipótese acima, não há qualquer óbice ao juiz conceder a tutela inibitória (prevenção do dano) somada a obrigação de fazer, consistente na recomposição da área já atingida, relativizando, por consequência, o pedido exordial que buscava apenas a mera compensação.
Desta forma, não se pode falar em incongruência, haja vista a observância do interesse difuso que se queria proteger, com a adoção de medidas mais pertinentes e que garantam ao final do processo a possibilidade de mitigação do dano causado, conforme se presume ser a pretensão fidedigna do legitimado ativo.
Em outras palavras, o Juiz age corretamente ao interpretar a pretensão de forma sistemática e lógica, com a escorreita correspondência instrumental imperativa entre o seu objeto imediato e mediato, garantindo o resultado efetivo da ação, ou seja, cumprindo com o seu papel de entregar o Direito da maneira mais apropriada para a exultação do direito posto ao crivo do judiciário.
Seguindo o mesmo silogismo, não caberia outra interpretação à hipótese exemplificativa a seguir: o autor coletivo expõe alguma publicidade enganosa ou abusiva, evidenciando a prática abusiva e, no transcorrer do pedido, demonstra os prejuízos dos consumidores e a natural necessidade de sua cessação, mas, no pedido final, apenas ventila pelo dano moral coletivo. Em tais circunstâncias, não há nenhum impeditivo ao magistrado a prolatar uma sentença que determine também obrigações de fazer e não fazer, justamente com o objetivo de retirar a publicidade e impedir sua reprodução no futuro.
Assim, como exposto no exemplo anterior, se o pedido é interpretado corretamente, ou seja, de acordo com o que está se postulando e, considerando o interesse difuso a ser tutelado, houve a correta aplicação do Direito ao passo que as providências que decorrem da decisão judicial permitirão alcançar concretamente uma tutela efetiva, atendendo, desta forma, plenamente os interesses coletivos, desde que, para tanto, seja respeitado o princípio do contraditório pelo juiz, ao colocar as partes em debate a respeito das providências que vislumbrar imprescindíveis.
5. Considerações Finais
O presente trabalho teve por objetivo o estudo do princípio da congruência/adstrição e sua relativização quando aplicado ao processo coletivo brasileiro, precipuamente para o atingimento dos objetivos da “terceira onda” preconizada por Mauro Cappelletti e Bryant Garth no acesso efetivo à Justiça.
Partindo-se das premissas teóricas dos aludidos autores que visam permitir o acesso concreto, real e substancial à Justiça para se chegar às conclusões necessárias e se ter, efetivamente, decisões judiciais justas, o estudo demonstrou que o princípio da congruência que, por sua vez, possui suporte legal imediato nos artigos 141 e 192 da Lei n. 13.105/2015 (NCPC), merece melhor análise quanto a sua aplicabilidade, sob pena do não atingimento do resultado prático almejado nas ações coletivas caso o entendimento histórico, limitante, continue prevalecendo em nossos tribunais.
Como decorrência, sobretudo, do princípio da demanda, o princípio abordado constitui importante instrumento no combate aos abusos na atividade jurisdicional o que, não necessariamente significa tolher possiblidades de interpretações mais extensivas para se alcançar o efetivo acesso à Justiça.
Dadas as peculiaridades da aplicação do princípio da congruência em cada situação concreta, bem como o necessário estudo das sentenças e decisões que determinam obrigações de fazer ou não fazer em determinadas situações de exceção à adstrição, só será incongruente a sentença ou decisão de mérito que fuja ao pedido mediato e aquela que se distancie da providência jurisdicional apta a resultar na efetiva satisfação do direito.
Desse modo, segundo o disposto no artigo 322, parágrafo 2º do CPC-15: “A interpretação do pedido considerará o conjunto da postulação e observará o princípio da boa-fé”, não restando mais dúvidas quanto a interpretação do pedido de forma sistemática, considerando aquilo que está sendo posto ao crivo do judiciário como um todo. Tal pensamento, por lógica, se apresenta muito mais plausível e efetivo ao se analisar o contexto das demandas coletivas em geral.
Validamente, pode-se afirmar que o magistrado agirá corretamente ao interpretar a pretensão de forma sistemática e lógica, utilizando-se, para tanto, da correta correspondência instrumental necessária entre o objeto imediato e mediado do pedido, garantido, desta forma, o resultado efetivo da ação. Como consequência, o Poder Judiciário encontra a tão almejada efetividade, supedâneo do princípio constitucional do acesso à tutela jurisdicional.
De outra senda, o chamado microssistema do processo coletivo, que encontra seus alicerces nas sólidas lições de Antonio Gidi, apresenta imensurável evolução na defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, logo, cada vez mais passam a ocupar papel de maior destaque diante de uma sociedade de massa, tal qual a que vivemos.
Em que pesem os avanços, principalmente na seara coletiva dos direitos individuais homogêneos dos consumidores, seguindo as três “ondas” do movimento de Mauro Cappelletti e Bryant Garth, culminando com a preocupação final de acesso efetivo à justiça, há inúmeros aspectos que ainda precisam ser repensados, pois do que vale um ordenamento jurídico coeso, instrumental, efetivo e funcional, dotado de um direito processual plenamente satisfatório se, no aspecto prático, de resultado, a coletividade não visualiza a completa concreção dos mandamentos contidos na sentença, gerando desconfiança aos cidadãos lesados e, pior, a pecha da impunidade ao causador do dano?
Para se chegar à possíveis respostas, a aplicação do princípio da congruência nas ações civis públicas requer uma constante evolução interpretativa em face do objetivo efetivo maior almejado pelo autor coletivo e, sem perder de vista as garantias constitucionais e com expresso fundamento na supremacia do interesse objeto da demanda, permitir, até mesmo, ao Juiz a adoção de outras providências jurisdicionais diversas das postuladas, inclusive quanto à natureza, como também proferir resultado não requerido expressamente.
A reinterpretação proposta e necessária do princípio da congruência não consiste propriamente em distanciar-se do pedido exordial ou facultar poderes arbitrários e/ou aleatórios a quem cabe julgar. A resposta jurisdicional deve estar cingida ao interesse coletivo ou difuso cuja proteção se almejou e com os fatos expostos pelos legitimados, em harmonia com a vontade real da sociedade e com a implicação objetiva cobiçada, sem que isso consista na disponibilidade do direito que se encontra sob o crivo do Poder Judiciário.
De todo o exposto, o estudo do princípio do dispositivo ou da congruência, em especial aos conceitos técnicos que permitam concluir pela sua flexibilização ou relativização quando aplicado às demandas coletivas, leva a conclusão, diante da supremacia do interesse coletivo onde se há um bem maior em jogo, hierarquicamente superior se analisado sob o aspecto do resultado final, que a interpretação correta do pedido, ou seja, de acordo com o que está se postulando e, considerando o interesse difuso a ser tutelado, há, portanto, a correta aplicação do Direito ao passo que as providências decorrentes da decisão judicial permitirão alcançar concretamente uma tutela efetiva, atendendo, desta forma, plenamente os interesses, desde que, para tanto, sejam respeitados incondicionalmente todos os demais direitos e garantias processuais afetas às partes.