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    Considerações acerca do despacho nº 3.622/2020 da ANEEL e a regra de anterioridade na formação do PLD

    01° de maio de 2022, Carlos Augusto Tortoro Jr., sócio do Tortoro, Madureira & Ragazzi Advogados e responsável pela área de energia elétrica e contencioso estratégico

    INTRODUÇÃO

    Com a implantação do PLD horário em janeiro de 2021, anteriormente, a ANEEL determinou a criação e estabeleceu um grupo de estudo para o desenvolvimento e adequação de modelos matemáticos para o planejamento e despacho hidrotérmico de curto prazo e estabelecimento de custo marginal de operação, que, em última instância, culmina na definição do PLD.

    Assim, a Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, em janeiro de 2020, determinou a abertura do Processo Administrativo nº 48500.000101/2020-28, no âmbito da Superintendência de Regulação dos Serviços de Geração – SRG, para homologação e autorização de uso do programa computacional DESSEM, desenvolvido pelo Centro de Pesquisas de Energia Elétrica – CEPEL.

    O DESSEM é um modelo matemático de despacho hidrotérmico de curto prazo e é utilizado pelo Operador Nacional do Sistema – ONS, para a operação diária de geração, e pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE, para o estabelecimento do PLD horário.

    Obviamente, os dados para a operação do sistema e o custo marginal da operação, que influencia diretamente no preço de liquidação de diferenças, contam com outros modelos matemáticos, tais como o NEWAVE, para o planejamento de longo e médio prazo, e o DECOMP, também utilizado no planejamento de curto prazo, com horizonte semanal.

    Ao longo do ano de 2020 diversas atualizações e correções no modelo matemático DESSEM foram realizadas pelo grupo de trabalho formado pelo ONS, CCEE e EPE, de modo que a partir de 2021 todo planejamento e operação diária do SIN, bem como a definição do PLD horário, fossem realizados pelo novo software.

    Não obstante o Processo Administrativo em questão tratar da homologação do modelo matemático de operação e despacho hidrotérmico de curto prazo, diversas questões envolvendo a alteração do planejamento anual da operação energética do período de 2020/2024 surgiram e foram analisadas pelo regulador, na medida em que se correlacionava, ainda que indiretamente, com o planejamento operativo de curto prazo.

    A primeira questão foi a revisão quadrimestral do PEN 2020/2024, na medida em que o ONS verificou uma diminuição drástica da carga em decorrência da pandemia de COVID-19 e que refletiu no planejamento, com consequências, inclusive, no planejamento mensal da operação, conforme se observa no gráfico acostado na Carta NOS 0119/DGL/2020 (CT CCEE 0006/2020 e Ofício no 0278/2020/PR/EPE):

    Essa situação levou o ONS a questionar o órgão regulador sobre o resguardo de previsibilidade ao mercado de eventual alteração dos dados do PEN 2020/2024, com consequente alteração do PMO, respeitando a regra da anterioridade, conforme disposição da Resolução Normativa nº 843/20193 da ANEEL, segundo a qual atualizações de informação fora dos cronogramas preestabelecidos devem ser realizadas com um mês de antecedência, exceto no caso de correção de erro, nos termos do § 1º de seu artigo 5º:

    Art. 5º A sistemática, prazos, responsabilidades e produtos para elaboração do PMO deverão constar dos Procedimentos de Rede do ONS, devendo conter, no mínimo:
    (…)
    § 1º Caso haja necessidade de atualização de informação para o PMO cujo prazo esteja em desacordo com os cronogramas de que trata o inciso IV, deverá ser dada publicidade aos agentes com antecedência não inferior a um mês do PMO.

    Na resposta à consulta, a ANEEL, por meio de sua Superintendência de Regulação dos Serviços de Geração, aduziu que existe previsão para a revisão extraordinária do Planejamento Anual da Operação Energética, como se verifica em submódulo dos Procedimentos de Rede do ONS, razão pela qual não haveria mitigação da previsibilidade ao mercado ou qualquer ofensa à regra da anterioridade.

    Durante a tramitação do processo, outra questão surgida foi a alteração da política operativa de geração hidroelétrica nas bacias hidrográficas, por conta de fenômeno adverso e restritivo de precipitações, que colocavam em risco o suprimento elétrico, o que de forma concreta afetava diretamente o planejamento da operação diária do SIN.

    Nestes termos, o ONS tratou diretamente com o Ministério de Minas de Energia, ANEEL e Agência Nacional de Águas e Saneamento – ANA sobre a defluência de alguns reservatórios de hidrelétricas, ainda que estivessem abaixo de suas quotas de segurança, como forma de manter o suprimento de energia elétrica em patamares seguros e ao menor custo global possível, em especial, por conta da elaboração do PMO de dezembro de 2020.

    O fato é que a inserção de novos dados no planejamento da operação energética, em decorrência de restrições hídricas, provocou como consequência lógica a alteração do custo marginal da operação, além de refletir no preço de liquidação das diferenças. Com isso, questões atinentes à previsibilidade e a anterioridade emergiram em debates administrativos, como será devidamente explicado a frente.

    Importante destacar que o Despacho nº 3.622/2020 refere-se apenas à análise e concessão de efeito suspensivo pleiteado em recurso administrativo incidental e que em nada se relaciona ao objeto principal do Processo Administrativo nº 48500.000101/2020-28, que cuida da homologação do modelo matemático DESSEM, como já mencionado.

    Com efeito, até o momento de elaboração do presente estudo, referido recurso administrativo não tinha sido julgado definitivamente em seu mérito. Todavia, esse fato não diminui a importância do tema que ora se analisa, qual seja, a regra da anterioridade na formação do preço de liquidação das diferenças, mormente, pelo interesse do setor na busca de uma sinalização de preços efetiva no mercado de energia elétrica, o que justifica, inclusive, a atual utilização do PLD horário.

    A regra da anterioridade insere-se aqui na discussão como uma forma de mitigação da assimetria de informação inversa, ou seja, como a formação de preço decorre do custo marginal da operação e esse valor é obtido através da operação centralizada do sistema interligado nacional pelo ONS, as alterações de dados nos modelos matemáticos que afetem o PLD precisam ser conhecidas pelo mercado, de forma que não haja surpresas e nem a quebra das bases objetivas dos negócios jurídicos que circundam o mercado de energia elétrica brasileiro.

    Em decorrência das singulares características do sistema elétrico brasileiro, que conta com despacho hidrotérmico centralizado dado por modelos matemáticos e formação de preços para um mercado livre atacadista, a relevância do tema se evidencia na observância da regra da anterioridade para a formação do PLD, corporificando uma preocupação na obtenção de sinalização de preços ao mercado que possa ao menos mitigar a assimetria de informação entre despacho centralizado e preços do mercado livre.

    A OPERAÇÃO DO SISTEMA INTERLIGADO NACIONAL

    Conforme disposição do art. 13 da Lei nº 9.648/1998, o ONS é o responsável pela operação da geração e da transmissão de energia elétrica no Sistema Interligado Nacional – SIN, de maneira centralizada, sob regulação e fiscalização da ANEEL:

    Art. 13. As atividades de coordenação e controle da operação da geração e da transmissão de energia elétrica integrantes do Sistema Interligado Nacional (SIN) e as atividades de previsão de carga e planejamento da operação do Sistema Isolado (Sisol) serão executadas, mediante autorização do poder concedente, pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, fiscalizada e regulada pela Aneel e integrada por titulares de concessão, permissão ou autorização e consumidores que tenham exercido a opção prevista nos arts. 15 e 16 da Lei nº 9.074, de 7 de julho de 1995, e que sejam conectados à rede básica.

    Ainda, é sua atribuição o planejamento e a programação da operação e o despacho centralizado da geração, de modo a otimizar os sistemas eletro energéticos interligados, nos termos da alínea “a” do parágrafo único do art. 13 da Lei citada anteriormente.

    O Sistema Interligado Nacional brasileiro caracteriza-se pela conexão por meio de linhas de transmissão de unidades de geração de energia elétrica e os centros de carga ou consumo, viabilizando a transferência de energia elétrica entre diferentes regiões do país, por meio de uma coordenação centralizada, que permite o aproveitamento dos potenciais hidrográficos. Todavia, a utilização de tais aproveitamentos hidrográficos impõe uma dificuldade adicional, posto que se trata de um país tropical e de dimensões continentais latitudinais com grandes variações de regime de chuvas e afluência entre as bacias hidrográficas exploradas.

    Diante dessa característica natural, o melhor aproveitamento do potencial de geração se dá com a interconexão das regiões do país, de modo que as grandes variações de afluência sejam devidamente aproveitadas para a geração de energia elétrica e contribua para a segurança de suprimento dos centros de carga, impondo uma racionalidade econômica na interligação entre a geografia da oferta de energia e a geografia da carga.

    Nos dias de hoje, com o incremento de fontes geradoras renováveis intermitentes/variáveis, esse racional econômico se mantém atual, na medida em que a força dos ventos ou a intensidade do sol também podem variar diante das características latitudinais do país.

    Essa infraestrutura criada e que viabiliza grandes transferências de energia elétrica entre as sub-regiões do país acaba por ter uma grande influência no custo marginal da operação – CMO, na medida em que permite ao operador central planejar a operação do sistema pelo menor custo global possível ao permitir a valoração do preço da água no futuro de acordo com as afluências de diferentes bacias hidrográficas em diferentes regiões do país. Assim, o ONS pode operar o sistema de acordo com o despacho ótimo dado pelos modelos matemáticos e a função de custo futuro.

    Destaca-se a importância de a operação do sistema ocorrer por meio de modelos matemáticos, que se utilizam de séries históricas de afluência de modo que o produto seja uma função de custo futuro da água, o que permite operar o sistema ao menor custo global possível hoje e definir o custo marginal da operação, que se caracteriza pelo custo de atender a um incremento de carga, ou seja, o custo para se produzir o próximo MWh que o sistema necessita.

    Na atual configuração de setor elétrico brasileiro, que adota um sistema mercantil, o CMO tem outra relevância, além de parametrizar o custo marginal da expansão, que é estabelecer o preço de liquidação de diferenças no mercado de curto prazo.

    Essa apuração de diferenças que ocorre no âmbito da CCEE, advém de um dos pilares de sustentação do modelo mercantil que é o lastro para toda a comercialização de energia elétrica por meio de contratos bilaterais. As diferenças entre energia comercializada/consumida e efetivamente contratada são liquidadas pelo PLD – Preço de Liquidação de Diferenças. Nota-se, então, uma total conexão entre a operação de um sistema hidrotérmico interligado, com a apuração do custo marginal da operação e a formação de preço no mercado livre de energia elétrica, ressaltando-se que o PLD tem limitação mínima e máxima estabelecidas pela ANEEL.

    Por fim, não é demais afirmar que a possibilidade de intercâmbio de energia elétrica entre as sub-regiões do país tem impacto direto na apuração do CMO, mormente pelas grandes diferenças de afluência entre as bacias hidrográficas com aproveitamentos hidráulicos em diferentes regiões do país, o que por sua vez impacta na formação do preço de curto prazo por conta do PLD, que espelha o CMO. Ademais, sabe-se que o uso de reservatórios e a política sobre hidrografia são compartilhados e toda e qualquer restrição operativa e hidrológica tem reflexos na operação e na definição do CMO.

    Todavia, esse impacto quando se refere ao PLD deve respeitar a regra da anterioridade, ou seja, surtirá efeitos no preço de curto prazo apenas 30 dias depois para que os agentes de mercado tenham ciência e não sejam surpreendidos, conforme política estabelecida em regulação da CMSE e da ANEEL.

    Diante de suas atribuições legais de operador centralizado do sistema elétrico brasileiro e por conta da elaboração do PMO de dezembro de 2020, o ONS encaminhou a CARTA ONS – 0315/DGL/2020 à Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico – ANA solicitando flexibilização das restrições hidráulicas dos reservatórios do Rio São Francisco, em 30 de novembro de 2020. Na correspondência, o Operador sinalizava que:

    “1. Conforme o ONS tem apresentado nas Salas de Crise e Acompanhamento coordenadas por esta Agência e em reuniões técnicas de acompanhamento do Comitê de Monitoramento do Setor Elétricos (CMSE), no decorrer dos últimos dois meses, estamos vivenciando uma transição entre os períodos seco e úmido no âmbito da operação do Sistema Interligado Nacional (SIN) sob condições hidroenergéticas adversas, com a observação de afluências críticas nas bacias integrantes dos subsistemas Sudeste/Centro-Oeste e Sul, bem como no SIN como um todo”.

    Pelo teor da Nota Técnica que embasava a Correspondência enviada à ANA, o operador do sistema indicava uma situação hidrológica crítica em todas as regiões do país, colocando em risco a segurança de fornecimento de energia elétrica, o que, segundo dados técnicos, viabilizavam a flexibilidade de restrição dos reservatórios da bacia do Rio São Francisco, mesmo também estando em situação hídrica adversa, como se observa no gráfico:

    Importante notar que a ANA tem competência legal para definir as condições de operação de reservatórios, para garantia de uso múltiplo de recursos hídricos no país, conforme Lei nº 9.984/2000:

    Art. 4º. A atuação da ANA obedecerá aos fundamentos, objetivos, diretrizes e instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos e será desenvolvida em articulação com órgãos e entidades públicas e privadas integrantes do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, cabendo-lhe:
    (…)
    XII – definir e fiscalizar as condições de operação de reservatórios por agentes públicos e privados, visando a garantir o uso múltiplo dos recursos hídricos, conforme estabelecido nos planos de recursos hídricos das respectivas bacias hidrográficas;
    (…)
    § 3º Para os fins do disposto no inciso XII deste artigo, a definição das condições de operação de reservatórios de aproveitamentos hidrelétricos será efetuada em articulação com o Operador Nacional do Sistema Elétrico – ONS.

    E, por meio da Resolução Normativa nº 2.081/2017, “dispõe sobre as condições para a operação do Sistema Hídrico do Rio São Francisco, que compreende os reservatórios de Três Marias, Sobradinho, Itaparica (Luiz Gonzaga), Moxotó, Paulo Afonso I, II, III, IV e Xingó.”

    Ao considerar os argumentos apresentados pelo ONS, a ANA, por meio da Resolução Normativa nº 51, de 3 de dezembro de 2020, autorizou “operação excepcional do Sistema Hídrico do Rio São Francisco em dezembro de 2020.”
    Com a alteração das vazões autorizadas pela ANA, o ONS realizou a atualização nos dados do planejamento anual, conforme Submódulo 7.2, quadro 3, dos Procedimentos de Rede (que no atual não encontra a exata correspondência), que indica a possibilidade de atualizações por restrição operativa hidráulica a qualquer momento.

    Por consequência lógica, as alterações foram replicadas na revisão semanal do PMO de dezembro de 2020, já aplicáveis para a segunda semana operativa do mês. Ou seja, no dia 5 de dezembro de 2020, os modelos matemáticos NEWAVE, DECOMP E DESSEM passariam a rodar já com as novas atualizações.

    Nota-se que o planejamento da operação considera diversas variáveis que influenciam os resultados dos softwares de gestão do sistema interligado nacional. Muito embora a estratégia operativa do sistema decorra de um estudo robusto, “o planejamento da operação de um sistema hidrotérmico tem que levar em conta um amplo espectro de atividades, abrangendo desde a otimização plurianual dos reservatórios até o despacho das usinas, levando em conta as restrições operativas.”

    Importante notar que, ao inserir os dados de restrição hídrica, os valores relativos ao CMO e, em sequência, ao PLD seriam alterados, por conta da modificação dos cenários fornecidos pelos modelos matemáticos.

    A FORMAÇÃO DO PREÇO DE LIQUIDAÇÃO DAS DIFERENÇAS – PLD

    Como exposto anteriormente, o produto do PMO é a operação do sistema ao menor custo global possível, que significa dizer o CMO, nos termos do que dispõe o art. 17 da Resolução Normativa ANEEL nº 843/2019.

    Estabelecido o valor do custo marginal da operação do sistema interligado brasileiro, os dados são repassados pelo ONS à CCEE, por conta de um acordo operativo entre os agentes institucionais, de modo que seja possível estabelecer um preço para os montantes de energia elétrica liquidados no que se convencionou denominar de mercado de curto prazo.

    Aliás, importante notar o quanto estabelecido no art. 20, § 1º, da Resolução Normativa ANEEL no 843/2019:

    Art. 20. O processo de cálculo do PLD será elaborado e coordenado pela CCEE, com apoio do ONS.
    § 1º Para a formação do PLD, a CCEE deverá utilizar os mesmos modelos e dados de entrada adotados pelo ONS para elaboração do PMO e revisões, desconsiderando-se as restrições elétricas internas a cada submercado.

    De acordo com especializada doutrina, o cálculo do PLD:

    (…) “baseia-se no despacho ex-ante, ou seja, é apurado com base em informações previstas, anteriores à operação real do sistema, considerando-se os valores de disponibilidades declaradas de geração e consumo previsto de cada submercado. O processo completo de cálculo do PLD consiste na utilização dos modelos computacionais NEWAVE e DECOMP, que produzem como resultado o Custo Marginal da Operação de cada submercado, respectivamente em base mensal e semanal.”

    Cabe ressaltar que, no estudo de caso realizado nesse artigo, o PLD ainda tinha base semanal, com estabelecimento de limites mínimos e máximos pela ANEEL, nos termos do parágrafo único do artigo 19 da Resolução Normativa nº 843/2019:

    Art. 19. O PLD tem por objetivo valorar os montantes que serão liquidados no Mercado de Curto Prazo – MCP, tendo por base principal o resultado do PMO.

    Parágrafo único. O PLD será determinado semanalmente para cada patamar de carga com base no CMO, limitado por um valor máximo e mínimo, conforme regulamento da ANEEL.

    Todavia, a partir de janeiro de 2021, o PLD passou a ter base horária, conforme § 2º do art. 19 da Resolução Normativa nº 843/2019, com redação dada pela Resolução Normativa nº 910/2020, e consoante determinação da Portaria MME nº 301/2019, por meio da utilização do modelo matemático DESSEM na programação de curtíssimo prazo do sistema.

    A adoção do PLD horário é a concretização de um importante marco para mercado livre de energia elétrica no Brasil, de modo que a sinalização de preços esteja a mais próxima possível da realidade operativa. Todavia, não há como se olvidar sobre a existência de uma aparente dicotomia nesse cenário, na medida em que o PLD é formado por uma base de dados decorrente do PMO, que nada tem a ver com formação de preço de mercado. De outro lado, o próprio PLD tem sua formação pautada em valores mínimos e máximos estabelecidos pela ANEEL e deixa de considerar situações relevantíssimas de operação do sistema, tal como os despachos fora da ordem de mérito e outras restrições.

    Ou seja, o PLD não pode ser considerado como um indicador claro e adequado de formação de preços para o mercado, na medida em que influenciado por intervenções regulatórias que passam longe da liberdade tão almejada, convergindo para o preço de custo marginal da energia elétrica. Haja vista que o PLD tem relação direta com o CMO, num sistema hidrotérmico como o brasileiro, com grande capacidade de estocagem, a variabilidade do preço de curto prazo é um problema atrelado ao custo da água e sua afluência tem grande impacto nos modelos matemáticos usados no despacho centralizado.

    Apesar de o regulador demonstrar uma disposição em manter um ambiente de desenvolvimento de mercado livre no setor de energia elétrica no Brasil, a sinalização econômica do preço não tem a mesma característica de outros países. Em outros mercados, tais como parte da Europa continental e Inglaterra, a sinalização de preços é dada por meio de leilões de energia para fornecimento no dia seguinte, com oferta de preços de geradores e consumidores.

    Importante notar que, ainda que em referidos mercados as fontes renováveis intermitentes já correspondam a um percentual considerável da matriz elétrica, fato é que a fonte predominante é térmica e a maior variável é o preço do combustível. Em geral, as fontes intermitentes são custeadas por meio de encargos em decorrência de incentivos dados pelos governos e arcados pelos consumidores. Ou seja, há uma previsibilidade na geração de energia elétrica, que viabiliza a oferta de preços e beneficia os agentes geradores mais eficientes e de menores custos operativos. Enfim, a indicação econômica de preços, em geral, está muito próxima da realidade da operação.

    O mesmo cenário não se pode vislumbrar no Brasil, em decorrência das peculiaridades do sistema fortemente lastreado na hidroeletricidade, com capacidade de armazenamento, e o arcabouço legal e regulatório vigente. No sistema brasileiro, como já destacado, o despacho centralizado das unidades geradoras hidroelétricas e térmicas objetiva a operação ao menor custo global possível, com grandes deslocamentos de energia entre as sub-regiões.

    Além disso, os aproveitamentos hidráulicos costumam operar em cascata, com diversos agentes geradores a montante e a jusante da mesma bacia hidrográfica, além de terem seus reservatórios compartilhados para outras atividades econômicas, o que de certa forma impede a oferta de preços pelos próprios agentes, competindo ao ONS determinar quais unidades geradoras despacháveis devem operar de acordo com uma classificação pelo custo dada pelos modelos matemáticos.

    Essa centralização da operação estabelecida pelo atual marco regulatório do setor de energia elétrica no Brasil gera uma clara assimetria de informação entre os agentes institucionais, regulador e os agentes do mercado livre no que tange a formação e referência de preços, na medida em que dados são inseridos unilateralmente nos modelos matemáticos e, por isso, conceitos como transparência e previsibilidade emergem e interagem nas relações jurídicas existentes no mercado livre de energia elétrica.

    A CONTROVÉRSIA FORMADA E A DECISÃO DA AGÊNCIA NACIONAL DE ENERGIA ELÉTRICA – ANEEL

    Não é demais frisar que o planejamento da programação de operação do sistema elétrico brasileiro enfrenta diversas variáveis, em decorrência da característica de sua matriz elétrica, fortemente baseada em geração hidráulica.

    Além disso, a operação dos reservatórios dos geradores hidráulicos deve respeitar o uso múltiplo da água, que vai desde controle de enchentes até questões relacionadas ao abastecimento de água e saneamento básico. Por isso, o planejamento e operação do sistema busca uma previsibilidade que transita entre a probabilidade matemática de modelos até as peculiaridades da operação em tempo real.

    Nestes termos, haja vista que a função primordial de um operador central do sistema seja a operação ao menor custo global possível, toda e qualquer situação vislumbrada em curtíssimo prazo e que possa agregar menores custos ao sistema, deve ser incorporada.

    Todavia, a operação do sistema deve-se compactuar com a regulação vigente. Embora se espere e seja prudente que a regulação preveja situações técnicas específicas, em respeito à discricionariedade técnica que fundamenta o conceito de regulação, o fato é que algumas determinações parecem contraditórias com o mundo físico da operação de um sistema elétrico.

    Por isso, ao tomar conhecimento da atualização de dados no PEN e que resultou em alterações nos produtos extraídos do PMO e da Programação diária da operação, a Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia questionou a ANEEL sobre o procedimento realizado pelo ONS, por meio de recurso administrativo de nº 48513.032049/2020-00, datado de 4 de dezembro de 2020, sustentando que haveria um desrespeito à anterioridade de informação ao mercado, conforme disposição do § 1º do art. 3º da Resolução nº 7/2016 do Conselho Nacional de Política Energética – CNPE:

    Art. 3º (…)
    § 1º Alterações nos dados de entrada que não decorrerem de correção de erros ou de atualização periódica com calendário predefinido, conforme regulação da ANEEL, deverão ser comunicadas aos agentes com antecedência não inferior a um mês do Programa Mensal de Operação – PMO em que serão implementadas para que tenham efeitos na formação de preço e na definição da política operativa.

    Segundo o argumento apresentado, ao alterar os dados de entrada dos modelos matemáticos e gerar alterações na formação de preço com impactos no PLD, haveria necessidade de tais implicações serem implementadas apenas no mês subsequente, com a referida alteração do PLD, dando previsibilidade ao mercado livre e às operações de curto prazo.

    O questionamento foi devidamente analisado na Nota Técnica nº 137/2020-SRG/ANEEL, elaborada pela Superintendência de Regulação dos Serviços de Geração, que recomendou o indeferimento do pedido, sustentando que referida atualização de dados estava prevista nos procedimentos de rede observados pelo ONS, razão pela qual não haveria a necessidade de observação da regra da anterioridade previsto na Resolução CNPE nº 7/2016.

    A conclusão defendida pela SRG/ANEEL pautou-se na existência de calendário preestabelecido para as atualizações dos dados referentes às restrições hidráulicas, considerando para isso a disposição contida nos procedimentos de rede vigentes em 2020, especificamente no Submódulo 7.2, quadro 3, que assim estabelece:

    Ou seja, ao atualizar os dados de restrição hidráulica no PEN, que podia ser feita em qualquer momento, e executar as simulações de operação de longo e médio prazo, os resultados obtidos consequentemente subsidiaram as simulações do PMO, que por coincidência estava em sua primeira semana de revisão.

    Logo, os novos resultados foram aplicados e culminaram novos valores de CMO e PLD, já que os mesmos modelos matemáticos e dados são utilizados pela CCEE para a fixação do preço de liquidação de diferenças. A conclusão da SRG/ANEEL foi publicada em 14 de dezembro de 2020 no Diário Oficial da União, por meio do Despacho nº 3.513, de 11 de dezembro de 2020.

    Todavia, um agente comercializador do setor ingressou com recurso administrativo com pedido de efeito suspensivo contra a Nota Técnica nº 137/2020-SRG/ANEEL, para requerer provisoriamente a suspensão dos efeitos do Despacho SRG/ANEEL nº 3.513/2020 Resolução Normativa ANA nº 51/2020 sobre o PLD no mês de dezembro/2020, e a questão foi levada à Diretoria Colegiada da ANEEL.

    Ao analisar a questão, em sua 14ª Reunião Pública Extraordinária da Diretoria Colegiada, em 21 de dezembro de 2020, a ANEEL, por maioria de votos, decidiu por conceder a medida acautelatória, com efeitos prospectivos, o que significa dizer que os efeitos da decisão de suspensão se aplicariam apenas na semana operativa subsequente, publicando-se o Despacho nº 3.622, de 21 de dezembro de 2020.

    Os argumentos que convenceram a maioria da Diretoria Colegiada da ANEEL foram no sentindo de que a política hierarquicamente superior aos procedimentos de rede protege a previsibilidade de preços em detrimento da precisão dos cenários decorrentes dos modelos matemáticos.

    Importante destacar, que o julgamento ocorrido em 21 de dezembro de 2020 cuidou apenas do pedido acautelatório proposto pelo agente, estando ainda pendente de análise pela SRG/ANEEL os recursos administrativos interpostos até o momento de elaboração deste artigo.

    O ponto relevante entre a controvérsia surgida e a decisão da agência reguladora é a proteção da legítima expectativa dos agentes do mercado livre em relação ao valor do preço de liquidação das diferenças dado pelos modelos matemáticos. Quando o ONS publica os dados sobre o custo marginal da operação e esses mesmos dados são utilizados pela CCEE para a publicação do valor do PLD, os agentes do mercado livre criam uma expectativa valorativa sobre as informações disponíveis e a partir daí encadeiam negócios jurídicos diversos consubstanciados em contratos com outros agentes do setor. Esse encadeamento de relações jurídicas é confeccionado sobre bases objetivas, ou seja, sobre os dados disponibilizados pelos agentes institucionais, e ensejam a formação de uma legítima expectativa de que estes mesmos dados se concretizem.

    A alteração nos dados já publicados pelos agentes institucionais e que possam afetar o valor do PLD romperia a legítima expectativa que permeia as relações jurídicas, configurando-se como uma afronta ao princípio da segurança jurídica. Desta forma, não é demais afirmar que a regra da anterioridade, consubstanciado na Resolução CNPE nº 7/2016 e Resolução Normativa ANEEL nº 843/2019, em última análise, é a materialização do princípio da segurança jurídica.

    Não se olvide que a formação de preços do PLD, dados por modelos matemáticos homologados e autorizados pela ANEEL e por intermédio de instituições reguladas e fiscalizadas também pela agência reguladora, reveste-se de características de ato administrativo, ao menos no atual modelo legal e regulatório do setor elétrico brasileiro, razão pela qual deve respeitar princípios adstritos à administração pública, mormente, o princípio da segurança jurídica, que se confunde com a proteção da legítima expectativa e boa-fé, como bem descreve Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

    “O princípio da proteção à confiança protege a boa-fé do administrado; por outras palavras, a confiança que se protege é aquela que o particular deposita na administração Pública”. (Direito Administrativo, 32ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 116)

    Importante destacar que a proteção da legítima expectativa não se trata de um porto seguro para a anulação de riscos empresariais e de atividade dos agentes do mercado livre. Ao contrário, parte-se do pressuposto de que os agentes atuantes saibam exatamente dos riscos de suas operações, estando aptos a operarem com diante de variáveis de mercado características de um setor complexo e regulado.

    Todavia, não se pode admitir que a inserção de dados em modelos matemáticos utilizados para o planejamento e operação do sistema seja feita sem prévia publicidade e com potencial de alterar valores de PLD que já foram publicados e informados ao mercado. Como bem pondera Celso Antônio Bandeira de Mello sobre a segurança jurídica dos atos da administração pública na relação com os administrados:

    “Por força mesmo deste princípio (conjugadamente com os da presunção de legitimidade dos atos administrativos e da lealdade e boa-fé), firmou-se o correto entendimento de que orientações firmadas pela Administração em dada matéria não podem, sem prévia e pública notícia, ser modificadas em casos concretos para fins de sancionar, agravar a situação dos administrados ou negar-lhes pretensões, de tal sorte que só se aplicam aos casos ocorridos depois de tal notícia” (Curso de Direito Administrativo, 15ª edição, São Paulo: Ed. Malheiros, 2003, p. 114).

    Há, inclusive, precedentes do Supremo Tribunal Federal, ratificando o entendimento aqui exposto, como se evidenciar no excerto de relatoria do Ministro Roberto Barroso:

    “Em última análise, o princípio da confiança legítima destina-se precipuamente a proteger expectativas legitimamente criadas em indivíduos por atos estatais” (ARE 823985 AgR, Relator: ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 23/03/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-070 DIVULG 11-04-2018 PUBLIC 12-04-2018).

    A regra da anterioridade, então, surge como salvaguarda da legítima expectativa dos agentes do mercado livre, privilegiando o princípio da segurança jurídica dos atos da administração pública e daqueles que atuam sob sua fiscalização e regulação.

    CONCLUSÃO

    Primeiramente, há que se ressaltar que a conclusão da Diretoria Colegiada da ANEEL está correta sob o ponto de vista regulatório e do princípio da segurança jurídica, em última instância, insculpido na regra da anterioridade, ainda que haja descasamento com a operação diária do SIN.

    Isso porque, tanto a Resolução CNPE nº 7/2016, quanto a Resolução Normativa ANEEL no 843/201927, preveem a necessidade de se respeitar a regra da anterioridade, ou seja, determina que as alterações de dados nos modelos matemáticos que reflitam no PLD sejam publicadas com trinta dias de antecedência, de modo que o mercado livre de energia elétrica tenha previsibilidade, de modo que a legítima expectativa de tais agentes seja respeitada. Nos dizeres de Wallace Paiva Martins Junior:

    “É instrumental à segurança jurídica a publicidade administrativa. O fornecimento de visibilidade da ação administrativa proporciona o conhecimento público e, por conseguinte, calculabilidade e previsibilidade de atividades, condutas, entendimentos e orientações pelos administrados para que estes possam desenvolver seus propósitos” (Tratado de direito administrativo: teoria geral e princípios do direito administrativo, 2ª ed., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 633).

    Obviamente, não se pode ignorar o fato de que a operação do SIN deva mitigar os fatores variáveis, de modo que o custo marginal da operação e o PLD reflitam valores mais próximos da realidade operativa. Aliás, esse é o escopo da existência de um operador central do sistema, que busca a otimização operacional ao menor custo global possível.

    Entretanto, a existência de diversos atores no setor elétrico demanda o respeito a uma previsibilidade de atos que impactam as relações diárias entre os agentes, compondo o que se denomina de estabilidade regulatória, que, em última análise, caracteriza o princípio da segurança jurídica, que, como bem expõe Sergio Guerra:

    “(…) representa, dessa forma, a ideia de um conjunto de condições que possa tornar possível à sociedade o prévio conhecimento das consequências de seus atos à luz de normas preestabelecidas pelo sistema jurídico”.

    Claro que o valor do PLD não tem correspondência exata com o CMO, na medida em que, por exemplo: (1) tem limitação mínima e máxima estabelecida pela agência reguladora e (2) não reflete diversas situações que impactam o custo operativo, tal como o despacho fora da ordem de mérito de usinas térmicas por segurança energética, cujo custo é arcado por meio de encargo.

    Contudo, não se olvide que o PLD é uma referência para a comercialização de energia elétrica no ambiente livre de contratação e na interação dos agentes que compõe o setor, razão pela qual a regulação em vigor tem postura indicativa de que a previsibilidade é um instituto a ser protegido em detrimento da precisão matemática dos modelos utilizados.

    A situação narrada em linhas anteriores demonstra que um setor altamente regulado demanda uma análise holística, cabendo a cada um de seus atores institucionais não se ater apenas a critérios matemáticos e operacionais. Uma demonstração dessa necessidade são os estudos e planejamentos realizados com horizontes de longo, médio e curto prazo, que abarcam fatores probabilísticos e determinísticos, além de uma infinidade de interações com outros agentes institucionais.

    O acerto da decisão proferida pela agência reguladora, contudo, não pode ser considerado como um apaziguamento da situação. Isso porque, na medida em que se preserva uma suposta previsibilidade de valores do PLD, seu descolamento cada vez maior com a realidade operativa parece caminhar em sentido contrário a expectativa de obtenção de preços cada vez mais aderentes ao custo real da operação, o que é desejado pelo mercado.

    Com a entrada em vigor do PLD horário e o desenvolvimento de mais um modelo matemático – DESSEM – para despacho centralizado de curtíssimo prazo, há a sinalização de uma busca por precisão valorativa da operação e das liquidações do mercado de curto prazo.

    Diante de um sistema que já convive com diversas variáveis climáticas, sociais e regulatórias, um precedente que respeite e privilegie a regra da anterioridade para alterações que impactem no PLD é importante, porém, mais coerente seria atualizar todos os procedimentos observados pelos operadores do sistema e do mercado, de modo a exercerem suas funções institucionais de maneira clara e alinhada com a regulação vigente e respeitando as bases objetivas dos negócios jurídicos firmados no ambiente de comercialização de energia elétrica.

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