Direito de Família requer muito mais do que tecnicismo de advogado
Como profissional lida com emoções do cliente, conhecimento de psicologia e antropologia é diferencial
Quem pensa que os casos de Direito Penal são muito pesados é porque nunca trabalhou com Direito de Família. O advogado dessa especialidade terá invariavelmente de lidar com o emocional das pessoas e encontrará clientes com muita mágoa, ressentimento e rancor. Casos de brigas de pai e filho, alienação parental ou irmão enfrentando irmão – na maior parte das vezes por dinheiro.
Na avaliação da advogada Ana Cláudia Scalquette, que também é professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie e trabalha na área há mais de 20 anos, o profissional do ramo precisa gostar muito do ser humano, entender suas imperfeições e aliar a técnica com uma necessária sensibilidade.
“Quando você tem um problema empresarial, fica bravo, vai aos órgãos de proteção, entra com demanda, mas chega em casa e dorme à noite. Porém, quando você tem problema de Direito de Família, em que o outro lado são seus próprios parentes, o problema te acompanha de manhã, à tarde e à noite”, diz Ana Cláudia.
A advogada conta que um dos momentos mais marcantes foi trabalhar com os divórcios ocasionados pelo caso do médico Roger Abdelmassih, em virtude das possíveis trocas de material genético.
“As mulheres não queriam saber se o material biológico eram delas mesmo enquanto os homens, em geral, não conseguiam conviver com essa dúvida. O que fazer? Várias famílias foram destruídas”, lamenta.
Perfil e assuntos mais presentes
De acordo com Scalquette, as demandas mais comuns na área são relacionadas a disputas de herança envolvendo irmãos que não se dão bem ou que o pai acaba protegendo um em detrimento do outro; brigas no fim de um casamento e a questão da guarda e alimentos dos filhos.
“Quem tem uma veia competitiva não deve vir para essa área porque a busca pela composição amigável é o objetivo”, diz.
Para Euclides de Oliveira, especialista na área, o profissional que escolhe o Direito de Família deve gostar não só desta especialidade, como também de advocacia privada, cível, criminal e sucessões. Ter conhecimentos de Direito Tributário e de Societário também é um diferencial.
“Tem que ter vocação, porque essencialmente não mexemos com dinheiro, mas com emoções, com os sentimentos nos litígios de divórcio, na guarda de filhos e investigação de paternidade. O profissional deve ter noções de psicologia para compreender melhor o que acontece nestes casos”, afirma.
Cássio Namur, advogado do Tortoro, Madureira & Ragazzi Advogados, ainda acrescenta a importância do estudo de várias disciplinas como sociologia e antropologia, para se colocar na situação das pessoas.
“É preciso ter uma visão mais humanista, compreender a realidade sociológica, e não só decorar a lei. A vida não repete casos. Não dá para eliminar complexidades. Cada caso é um caso, cada situação requer suas próprias soluções”, afirma.
Além disso, Oliveira diz que é preciso tentar alcançar a paz entre as partes para “sempre que possível chegar a um acordo”.
Especialização
Nas faculdades, o Direito de Família é lecionado dentro de Direito Civil. Então, para se especializar, Namur diz que a melhor maneira é fazer pós-graduação lato sensu, mestrado ou doutorado.
Na visão de Scalquette, uma especialização é importante, mas o melhor aperfeiçoamento se dá no dia a dia e isso se constrói com o tempo.
“A habilidade de conversar, de fazer as partes entenderem o que elas estão fazendo, isso vai além de um curso de especialização, além da teoria”, afirma. Segundo ela, é necessário estar ao lado de bons profissionais e lembrar que cada caso pode ensinar algo.
Mudanças
Hoje se valoriza ainda mais a relação socioafetiva, ou seja, não tem diferenças entre filho biológico e filho socioafetivo. Segundo Namur, isto é possível pelo novo conceito de família.
“Antes era só pai, mãe e filhos. Hoje temos dois pais, duas mães, filhos de várias relações, homoafetividade, e até poliafetividade, quando há relação de mais de duas pessoas que se diz familiar. Não há reconhecimento legal judicial, mas extrajudicial e repercussões sucessórias”, afirma.
Equiparação de união estável com casamento
Segundo Euclides de Oliveira, o Brasil evoluiu bastante na questão do Direito Sucessório, principalmente por reconhecer o direito dos companheiros, da união estável. “Desde 1988 a união estável é reconhecida como entidade familiar, quando o companheiro passou a ter direitos na herança”, diz.
Há dois anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) tratou sobre o tema em um julgamento com repercussão geral determinando que é inconstitucional a diferença entre companheiro e cônjuge na herança.
Além disso, o STF também reconheceu que a mesma regra se aplica à relação homoafetiva. “Hoje, se admite o casamento de pessoas do mesmo sexo. É um grande passo que, sem dúvida, moderniza e dignifica as pessoas dentro do conceito de família”, diz Euclides.
Planejamento sucessório
Ricardo Chamon, do Chamon Santana Advogados (CSA), afirma ter identificado um crescimento de litígios envolvendo empresas familiares, o que fez com que o planejamento sucessório tenha se tornado uma das principais demandas do ramo.
“Antigamente quando se falava de Direito de Família, pensávamos apenas em brigas entre herdeiros e divórcio. Mas como o Brasil passou por uma fase de crescimento e desenvolvimento, várias famílias enriqueceram, e isso trouxe preocupação com sucessão. Antes só grandes grupos trabalhavam com isso”, explica.
De acordo com Chamon, o planejamento sucessório é um processo longo, até porque é algo que os empresários passam por ele apenas uma vez na vida. Além disso, para ele, o mais complexo é identificar aquilo que exatamente se busca na sucessão.
Chamon deu o exemplo de uma família rica, em que o pai construiu patrimônio e teve três filhos, dos quais dois não querem ser sócios. “É preciso começar um trabalho de psicólogo com o cliente para entender o conteúdo e não a forma: o que os pais esperam, o que eles gostariam de fazer com patrimônio e tudo mais”, exemplifica. “Leva um tempo para sentir a cultura da família, desenhar modelos de sucessão e esquadrinhar o patrimônio das pessoas”.
Para o advogado, quatro passos devem ser seguidos:
1-) Discussão profunda com o empresário sobre cenários possíveis. Definição de premissas.
2-) Desenho de modelos, questões contratuais, cíveis, societárias.
3-) Discussão com a família, conscientização dos herdeiros.
4-) Plano de implementação, com cronograma, elaboração de testamento.