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    Sequestro Internacional no Brasil e a Legitimidade da Voz da Criança.

    Autor: Cassio S. Namur. Advogado, sócio de Tortoro, Madureira & Ragazzi Advogados

    Tema recorrente no mundo, o sequestro internacional de crianças, em geral cometido pelos pais, não foge da supervisão das autoridades brasileiras.

    O Brasil possui um amplo sistema legislativo que visa proteger as crianças e adolescentes. Prova disso, está na qualidade de Carta Maior do Estado, a Constituição Federal, que ao disciplinar sobre esta matéria no “Capítulo VII – Da Família, da Criança do Adolescente, do Jovem e do Idoso”, em seu artigo 227 estabelece:

    “Art. 227 É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao jovem, com absoluta prioridade o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. ”

    Segundo a Constituição Federal, o cuidado com a criança e com o jovem é um dever que cabe a todos, não somente à família, incluindo o Estado e demais cidadãos, que devem zelar para os seus direitos serem observados, assim como as disposições de guarda e demais prerrogativas correlatas sejam cumpridas.

    Neste ponto vale relembrar a existência de excelentes dispositivos legais no Brasil para proteção ao público referido neste artigo. Em especial, destaco o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei n° 8.069, de 13/07/1990 (“ECA”), atualizado ao longo dos anos, um dos mais completos do mundo. Tendo como parâmetro as diretrizes constitucionais, o ECA estabeleceu normas com essa intenção em seus artigos 3º e 4º:

    “Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

    Parágrafo único. Os direitos enunciados nesta Lei aplicam-se a todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem.”

    “Art. 4° É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

    Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:

    a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;

    b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;

    c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;

    d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude. ”

    Diante deste cenário, é possível concluir – do ponto de vista legal – que as regras nacionais são completas, abrangentes e condizentes com a realidade do país e confirmam o princípio constitucional do melhor interesse das crianças e adolescentes.

    Nesse sentido, os dispositivos legais mencionados do Estatuto têm por escopo reproduzir não apenas a Constituição Federal, mas também o que está previsto na Declaração de Princípios da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 20/11/1989, ratificada pelo Brasil em 26/01/1990, por meio do Decreto Legislativo nº 28, de 14/09/1990, vindo a ser promulgada pelo Decreto Presidencial nº 99.710, de 21/11/1990 (“Convenção sobre os Direitos da Criança”). “Precedente de mais de ano à adoção daquela Convenção, já estava em vigor a Constituição de 1988, que dedica à criança e ao adolescente um dos mais expressivos textos consagradores de direitos fundamentais da pessoa humana, cujo conteúdo foi explicitado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, instituído pela já referida Lei 8.069/1990”, conforme afirma José Affonso da Silva.1 Todo esse compilado que recordo aqui, já evidencia a preocupação do Brasil no intento de atender aos interesses dos vulneráveis em questão.

    Mas, essa é uma breve introdução para adentrarmos ao tema mencionado no título: sequestro internacional de crianças e adolescentes.


    1 SILVA, José Affonso da. Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 853.

    1. Sequestro internacional de crianças e adolescentes no Brasil

    Segundo a Convenção da Haia #28, de 25/10/1980, sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças, em vigor no exterior desde 01/12/1983 (“Convenção”), o conceito do sequestro internacional de crianças e adolescentes é definido como a transferência ilícita ou a retenção indevida em país diferente daquele em que a criança detinha sua residência habitual, sem o consentimento de um dos genitores, responsáveis legais ou autorização judicial.

    O Brasil ratificou a Convenção muitos anos após sua criação. O Congresso Nacional a aprovou por meio do Decreto Legislativo n. 79, de 15/09/1999, tendo o governo brasileiro depositado o instrumento de adesão à Convenção em 19/10/1999, passando a mesma a vigorar no país em 01°/01//2000, conforme se verifica do Decreto Presidencial de Promulgação nº 3.413, de 14/04/2000, publicado no Diário Oficial do dia 17 do mesmo mês.

    A referida Convenção abrange crianças e adolescentes, porquanto em seu artigo 4º prevê a proteção para crianças de faixa etária de até 16 anos, cessando a sua aplicação quando a criança atingir essa idade. Vale lembrar que a descrição legal brasileira estabelece como crianças, os cidadãos com até 12 anos de idade incompletos e adolescentes aqueles que têm entre 12 e 18 anos, conforme previsto no art. 2º do ECA, que dispõe:

    “Art. 2º Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade. ”

    Ressalto que a partir deste excerto, passarei a adotar a expressão “criança” para tratar de ambos.

    Os dois principais objetivos do acordo da Haia estão definidos em seu artigo 1º, que assim estipula:

    “Artigo 1

    A presente Convenção tem por objetivo:

    a) assegurar o retorno imediato de crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado Contratante ou nele retidas indevidamente;

    b) fazer respeitar de maneira efetiva nos outros Estados Contratantes os direitos de guarda e de visita existentes num Estado Contratante.”

    É cristalino, portanto, que a Convenção visa assegurar o retorno imediato dos vulneráveis ilicitamente transferidos para quaisquer Estados Contratantes da Convenção ou neles retidos indevidamente e, ainda, fazer respeitar entre os Estados Contratantes os direitos de guarda e de visita.

    Para resolver essa situação dramática e solicitar a volta da criança à sua residência habitual ou corrigir um caso de retenção, é necessário que o acontecimento tenha ocorrido há menos de 1 ano (Artigo 12 da Convenção). O artigo 12 estabelece:

    “Artigo 12

    “Quando uma criança tiver sido ilicitamente transferida ou retida nos termos do Artigo 3º e tenha decorrido um período de menos de 1 ano entre a data da transferência ou da retenção indevidas e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado Contratante onde a criança se encontrar, a autoridade respectiva deverá ordenar o retorno imediato da criança.

    A autoridade judicial ou administrativa respectiva, mesmo após expirado o período de 1 ano referido no parágrafo anterior, deverá ordenar o retorno da criança, salvo quando for provado que a criança já se encontra integrada no seu novo meio.

    Quando a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido tiver razões para crer que a criança tenha sido levada para outro Estado, poderá suspender o processo ou rejeitar o pedido para o retomo da criança.”

    A título informativo, recebo ocasionalmente consultas de pais que procuram notícias sobre seus filhos “sequestrados”, após esse período de um ano, o que infelizmente significa que a Convenção não mais pode ser invocada e aplicada. Nestes casos, os pais terão de recorrer a acordos ou buscar o Judiciário, pelas vias ordinárias, a fim de valer os seus direitos e os de seus descendentes.

    A restituição precisa ser imediata, sendo que as autoridades judiciais ou administrativas devem tomar uma decisão no prazo de 6 semanas a contar da data da apresentação do pedido, consoante previsto no artigo 11 da Convenção:

    “Artigo 11

    As autoridades judiciais ou administrativas dos Estados Contratantes deverão adotar medidas de urgência com vistas ao retorno da criança.

    Se a respectiva autoridade judicial ou administrativa não tiver tomado uma decisão no prazo de 6 semanas a contar da data em que o pedido lhe foi apresentado, o requerente ou a Autoridade Central do Estado requerido, por sua própria iniciativa ou a pedido da Autoridade Central do Estado requerente, poderá solicitar uma declaração sobre as razões da demora. Se for a Autoridade Central do Estado requerido a receber a resposta, esta autoridade deverá transmiti-la à Autoridade Central do Estado requerente ou, se for o caso, ao próprio requerente.”

    O estipulado no artigo 11 da Convenção significa que se trata de uma resolução sem demora, conforme previsto no artigo 12 da Convenção. Se este prazo for ultrapassado, o que é recorrente, a Autoridade Central precisa justificar as razões do atraso.

    Existem inúmeros motivos pelos quais se dá o sequestro internacional de crianças, como a violência doméstica, física, psíquica ou sexual. Ou ainda situação de guerra ou de conflagração armada e, ultimamente, até atos de terrorismo podem vir a ser considerados como justificativa em determinadas situações. Todavia, em um considerável número de casos, os genitores ou responsáveis legais não mais chegam a um consenso sobre a vida em comum com seu cônjuge ou parceiro. E esse

    tipo de situação acaba por impossibilitar o convívio de ambas as partes com os filhos como forma de retaliação ou até mesmo vingança. Nesse aspecto, é importante mencionar que o artigo 13 b) da Convenção, que estipula as exceções legais sobre o retorno da criança. A sua interpretação, todavia, pode gerar diversas dúvidas, pois atender essas objeções, significa transferir em muitos casos, o julgamento da divergência entre os pais ou responsáveis pela criança para a jurisdição à qual a criança foi sequestrada quando toda essa discussão deveria ser provada na jurisdição de sua residência habitual. O artigo 13 b) assim prevê:

    “Artigo 13

    Sem prejuízo das disposições contidas no Artigo anterior, a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido não é obrigada a ordenar o retorno da criança se a pessoa, instituição ou organismo que se oponha a seu retorno provar:

    a) …..

    b) que existe um risco grave de a criança, no seu retorno, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável.

    A autoridade judicial ou administrativa pode também recusar-se a ordenar o retorno da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já idade e grau de maturidade tais que seja apropriado levar em consideração as suas opiniões sobre o assunto.

    Ao apreciar as circunstâncias referidas neste Artigo, as autoridades judiciais ou administrativas deverão tomar em consideração as informações relativas à situação social da criança fornecidas pela Autoridade Central ou por qualquer outra autoridade competente do Estado de residência habitual da criança.”

    Portanto, é preciso reforçar que não se pode generalizar ou flexibilizar as exceções legais, nem desrespeitar o direito de visita dos pais ou daqueles que detenham a guarda ou poder parental. Neste aspecto, Jacob Dolinger ao discorrer sobre o tema, declara: “Na apreciação de um fenômeno do próprio filho pelo pai ou pela mãe, ou às vezes por um tutor, o problema central é determinar a prioridade entre o benefício da criança e o cumprimento rigoroso do que já foi judicialmente estabelecido. Se a primordial preocupação é o bem-estar da criança, em muitos casos de sequestro deveríamos deixar a criança onde se encontra, desde que constatado que ela está bem com o genitor sequestrador, no novo local e ambiente em que se encontra agora. Mas, diversa seria a solução se devêssemos observar com rigor o cumprimento do que ficou judicialmente decidido na jurisdição em que a criança tinha a sua residência habitual, não compactuando com fraudes à lei e desrespeitos a determinações judiciais, pois se estas não forem respeitadas estaremos permitindo que as partes

    venham a fazer justiça com as próprias mãos e, em última análise, que as crianças se tornem joguetes na guerra pós-separação dos pais, provocada por frustrações, amarguras e ímpetos vingativos.”2

    Aqui cabe destacar a gravidade de impedir o contato da criança com um dos genitores ou responsável por sua guarda e garantir no mínimo o direito a esse convívio, para não utilizar a expressão “visita”. Muitos pais ou guardiões o fazem, talvez inconscientes das consequências que tal ação pode causar aos filhos ou crianças sob guarda. Afastá-las do seu lar, entorno social e escolar é uma decisão muito extrema e prejudicial. E não pode haver atitude complacente com essa escolha. A possível ou eminente ruptura da conjugalidade de seus pais ou de seus responsáveis legais, não pode significar também para a criança a “ruptura dos vínculos entre ela e seus pais. O menor deve ser tratado como pessoa em formação, sujeito de direito e não um objeto em negociação. Afinal a família é o eixo de realização pessoal e afetiva de seus integrantes, e é neste locus que o sujeito se forma, estrutura-se

    psiquicamente, enfim humaniza-se”, como nos ensina Rodrigo da Cunha Pereira.3 No mesmo sentido, registro a afirmação de Luiz Edson Fachin: “no relacionamento entre pais e filhos, a ordem jurídica deve se inspirar em valores que fomentam um ambiente familiar sadio e equilibrado. O novo Código Civil, em vigor desde janeiro de 2003, ao tratar do poder familiar, acolhe essa ordem de ideias, embora pudesse ter avançado mais no sentido de reconhecer, sempre, o melhor interesse da criança como núcleo central das preocupações do sistema jurídico. A base dessas ideias está em que quem educa, num procedimento dialógico também se renova, reinventando ideais e valores”.4

    É senso comum o convívio das crianças com seus pais ou guardiões como necessário para melhor formação da personalidade das pessoas adultas, porquanto este convívio é no sentido do seu melhor interesse, claro com exceções dos casos em que a coabitação seja impossível de tal forma que prejudica o desenvolvimento do vulnerável. Para isso, a Convenção é um veículo eficaz entre os países aderentes. O artigo 6º dela estabelece que cada Estado Contratante designará uma Autoridade Central encarregada do cumprimento das obrigações previstas no referido regulamento da Haia, Cabendo a essa tomar todas as providências para criança retornar o mais rapidamente possível ao país de sua residência de origem ou a fim de estabelecer o direito de visita abruptamente desrespeitado. O artigo 6º estipula:

    “Artigo 6

    Cada Estado Contratante designará uma Autoridade Central encarregada de dar cumprimento às obrigações que lhe são impostas pela presente Convenção.

    Estados federais, Estados em que vigorem vários sistemas legais ou Estados em que existam organizações territoriais autônomas terão a liberdade de designar mais de urna Autoridade Central e de especificar a extensão territorial dos poderes de cada uma delas. O Estado que utilize esta faculdade

    deverá designar a Autoridade Central à qual os pedidos poderão ser dirigidos para o efeito de virem a ser transmitidos à Autoridade Central internamente competente nesse Estado.”

    Para tornar isso possível, existe a Autoridade Central que é um organismo interno nacional responsável pela cooperação jurídica com outros estados e organizações estrangeiras. Ela recebe, analisa, adequa, transmite e dá seguimento às solicitações de colaboração internacional, além de representar o Estado requerente – inclusive judicialmente – se comprovados os requisitos para tanto. É certo, todavia, que a decisão final cabe ao Juiz Natural, ao Juízo onde aquela criança resida habitualmente.

    No Brasil, a tramitação de casos de subtração de crianças ou de reestabelecimento de direito de guarda ou visita, sob o âmbito da Convenção, é atualmente de responsabilidade da Autoridade Central Administrativa Federal para Adoção e Subtração Internacional de Crianças e Adolescentes (“ACAF”). Trata-se de órgão vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, através da Secretaria Nacional de Justiça e sob a gestão do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional. Quando esses processos são judicializados, será a Advocacia-Geral da União (“AGU”) o órgão de representação processual da União Federal em juízo que irá tratar dos interesses do Estado estrangeiro solicitante da cooperação jurídica. Os seus integrantes são extremamente preparados e qualificados, de sorte que com isso o Brasil presta um enorme serviço, de alta qualidade e competência para os Requerentes estrangeiros e sem qualquer custo processual. O Brasil não fez reserva quanto às despesas de participação de advogado, consultor jurídico ou no tocante ao pagamento de custos judiciais, consoante previsto no artigo 42, quando se refere ao artigo 26 da Convenção.

    Neste aspecto, vale reproduzir o disposto nos artigos 42 e 26 da Convenção:

    “Artigo 42

    Todo Estado Contratante poderá, até o momento da ratificação, aceitação, aprovação ou adesão, ou quando de uma declaração feita nos termos dos Artigos 39 ou 40, fazer uma ou ambas reservas previstas nos Artigos 24 e 26, terceiro parágrafo. Nenhuma outra reserva será admitida.

    Qualquer Estado poderá, a qualquer momento, retirar uma reserva que haja feito. A retirada deverá ser notificada ao Ministério dos Negócios Estrangeiros do Reino dos Países Baixos.

    O efeito da reserva cessará no primeiro dia do terceiro mês após a notificação mencionada no parágrafo anterior. ”

    “Artigo 26

    Cada Autoridade Central deverá arcar com os custos resultantes da aplicação da Convenção.

    A Autoridade Central e os outros serviços públicos dos Estados Contratantes não deverão exigir o pagamento de custas pela apresentação de pedidos feitos nos termos da presente Convenção. Não poderão, em especial, exigir do requerente o pagamento de custos e despesas

    relacionadas ao processo ou, eventualmente, decorrentes da participação de advogado ou de consultor jurídico. No entanto, poderão exigir o pagamento das despesas ocasionadas pelo retorno da criança.

    Todavia, qualquer Estado Contratante poderá, ao fazer a reserva prevista no Artigo 42, declarar que não se obriga ao pagamento dos encargos previstos no parágrafo anterior, referentes à participação de advogado ou de consultor jurídico ou ao pagamento dos custos judiciais, exceto se esses encargos puderem ser cobertos pelo seu sistema de assistência judiciária e jurídica.

    Ao ordenar o retorno da criança ou ao regular o direito de visita no quadro da presente Convenção, as autoridades judiciais ou administrativas podem, caso necessário, impor à pessoa que transferiu, que reteve a criança ou que tenha impedido o exercício do direito de visita o pagamento de todas as despesas necessárias efetuadas pelo requerente ou em seu nome, inclusive as despesas de viagem, as despesas efetuadas com a representação judiciária do requerente e as despesas com o retorno da criança, bem como todos os custos e despesas incorridos na localização da criança. Na falta de medida convencional, bilateral ou multilateral (como é o caso da Convenção), há outro caminho. Significa dizer quando outro Estado, em solicitações ativas ou passivas, não for signatário da Convenção, e não houver acordo bilateral, utiliza-se a via diplomática. Nesses casos a Autoridade Central é exercida por meio do Ministério das Relações Exteriores. A Portaria Interministerial nº 201, de 21/03/2012, regulamenta a tramitação de casos que demandam cooperação jurídica internacional. A referida Portaria, em seu at. 1°, define a tramitação de cartas rogatórias, bem como pedidos de auxílio direto, ativos e passivos, em matéria civil e penal, na ausência de cooperação internacional bilateral ou multilateral.

    Como é de conhecimento de todos, a tramitação do processo ocorrerá na Justiça Federal, pois a competência é assim definida pelo artigo 109, inciso III, da Constituição, quando as causas são fundadas em tratado ou contrato da União com Estado estrangeiro ou organismo internacional.


    2 DOLINGER, Jacob. A família no direito internacional privado. A criança no direito internacional. In: DOLINGER, Jacob Direito civil internacional, v.I, t. segundo, parte especial. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 242.

    3 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Divórcio: teoria e prática. 4ª ed. de acordo com a Emenda Constitucional n . 66/2010. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 90.

    4 FACHIN, Luiz Edson. Questões do direito civil brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 116.

    2. A oitiva da criança e do adolescente como meio de assegurar o seu direito de escolha e de convivência

    O ponto fundamental e, na minha opinião também determinante, ou não, para o retorno da criança ao seu país de origem ou restabelecimento do direito de guarda/visita é relativo à oitiva da criança pelo Juiz. Toda criança tem assegurado seu direito fundamental de convívio com ambos os pais. Exigir que a escolha seja feita entre algum de seus genitores em detrimento do outro, é talvez, a mais grave agressão que se pode perpetrar contra o superior interesse dela. É mais que um dever de ouvir, a criança tem o direito de ser ouvida. Assim, vale frisar o disposto no artigo 12 da Convenção sobre os Direitos da Criança que, em seu Item 1, consagrou que a criança terá direito a seus próprios pontos de vista, assim como direito de exprimir suas opiniões livremente, de acordo com a idade e maturidade apresentadas; no Item 2 do referido artigo, está previsto que a criança tem o direito de ser

    Ouvida em qualquer procedimento judicial ou administrativo. Assim estabelece o artigo 12 da Convenção sobre os Direitos da Criança:

    “Artigo 12

    1. Os Estados Partes assegurarão à criança que estiver capacitada a formular seus próprios juízos o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados com a criança, levando-se devidamente em consideração essas opiniões, em função da idade e maturidade da criança”.

    2. Com tal propósito, se proporcionará à criança, em particular, a oportunidade de ser ouvida

    em todo processo judicial ou administrativo que afete a mesma, quer diretamente quer por

    intermédio de um representante ou órgão apropriado, em conformidade com as regras

    processuais da legislação nacional.”

    A Convenção sobre os Direitos da Criança fixou como limites para a audição da criança a idade, assim como a sua maturidade, sem estabelecer, contudo, uma idade mínima. Em sentido oposto, o ECA fixou a idade limite mínima de 12 anos segundo o qual as crianças devam ou não prestar depoimento em juízo.

    De acordo com Gustavo Ferraz de Campos Monaco, a Convecção da ONU deve prevalecer sobre o ECA, pois este “leva a questão referente à maturidade para o plano não objetivo, que foi imposto pela idade limite da legislação interna, para privilegiar o entendimento psicológico e social do envolvido.”5

    A criança, portanto, deverá participar efetivamente nos processos judiciais e administrativos, desde que tenha interesse jurídico, ou seja, na qualidade de parte, terceiro interessado ou testemunha, emitindo as suas opiniões a respeito dos direitos subjetivos que lhe atingem de forma direita ou indireta.

    O artigo 13 da Convenção sobre os Direitos da Criança consagrou que a criança terá direito à liberdade de expressão, isto é, no dizer de Solano de Camargo, “a liberdade de expressão e

    a liberdade de buscar, receber e transmitir informações e ideias de todos os tipos, na forma oral, escrita ou impressa, por meio das artes ou por qualquer outro meio de escolha.”6 Dispõe o artigo 13:

    “Artigo 13

    1. A criança terá direito à liberdade de expressão. Esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e divulgar informações e ideias de todo tipo, independentemente de fronteiras, de forma oral, escrita ou impressa, por meio das artes ou por qualquer outro meio escolhido pela criança.

    2. O exercício de tal direito poderá estar sujeito a determinadas restrições, que serão unicamente as previstas pela lei e consideradas necessárias:

    a) para o respeito dos direitos ou da reputação dos demais

    b) para a proteção da segurança nacional ou da ordem pública, ou para proteger a saúde e a moral públicas.”

    Conclui-se que os artigos 12 e 13 da Convenção sobre os Direitos da Criança traduzem o seu direito a liberdade de opinião e de expressão. Para José Afonso da Silva as “liberdades de opinião e de expressão complementam-se e integram-se mutuamente, consistindo a segunda na exteriorização da primeira.”7

    Assim, garantindo para a parte mais interessada, que é a criança, a oportunidade de ter seu relato considerado em todo processo judicial ou administrativo e sem jamais solicitar uma suposta preferência quanto ao genitor que deve conviver. A oitiva da criança, caso a maturidade psicológica o recomende, há de ser deliberada com a estrita finalidade de definir as providências de retorno ao Estado de residência habitual, bem como, as medidas a serem provisoriamente adotadas para regular o convívio com ambos os pais ou detentores da guarda, até que se viabilize a cognição do caso pelo juiz natural. Nesse sentido, Pietro Perlingieri nos ensina, que “o interesse do menor é identificado como a obtenção de uma autonomia pessoal e de juízo e pode concretizar-se também na possibilidade de exprimir escolhas e propostas alternativas que possam ter relação com os mais diversos setores, dos interesses culturais àqueles políticos e afetivos, desde que seja salvaguardada a sua integridade psicofísica e o global crescimento da sua personalidade.”8

    Quando a Convenção se refere ao grau de maturidade, alude à capacidade de definir suas preferências, com compreensão de suas possíveis consequências. A audição da criança exige que se

    respeite na atuação judicial as normas do devido processo, a saber: a) contar com uma informação prévia, expressada de acordo com a sua idade, que lhe possibilite conhecer a situação ou matéria sobre a qual deva expressar-se ou emitir a sua opinião; b) preservar sua intimidade que reclama audiências informais, à margem do sistema contraditório, sem solenidades que possam atemorizá-la e sem a presença das partes ou de seus assessores; c) implementar a intervenção e profissionais especializados, quando seja necessário e possível, e de acordo com a idade da criança, que saibam interpretar adequadamente suas expressões. Significa dizer, que a comunicação com a criança pode concretizar-se de diversas maneiras de acordo com a sua evolução ou grau de maturidade, dado este que determinará a gravitação da vontade da criança sobre a resolução Judicial, como afirma Cecilia P. Grossman.9 Não é uma situação fácil para o juiz, pois além de abranger critérios biológicos e legais, cada criança ou adolescente possui um grau de maturidade individual, que decorre de diversos fatores.

    No processo de audição da criança é importante, para tomada de decisões, que se garanta que a criança disponha de elementos e compreenda toda a informação da exploração judicial e que ela tenha liberdade de dizer se quer exercer o seu direito de ser ouvida ou não e, ainda, que tenha a liberdade de manifestar que informação ela quer compartilhar ou não.

    Resta claro que a necessidade de audição do menor, quando sua idade e maturidade o permitir, é essencial pois é evidente que este direito de relacionar-se com seus pais ou responsáveis afeta a sua esfera pessoal e familiar, conforme demonstra Silvia Díaz Alabart.10

    No Brasil, a oitiva da criança possui caráter complementar e normalmente ocorre a partir dos 12 anos, conforme estabelece o ECA. Em outras jurisdições, como Espanha, por exemplo, se permite a audição da criança partir dos 8 anos, inclusive antes se tiver maturidade suficiente. Na Argentina, não há uma idade mínima como critério objetivo fixado por lei. Todavia, a partir dos 13 anos as pessoas adquirem amplos direitos, inclusive de ser ouvidos em processos administrativos ou judiciais. No Chile, também não há critério legal objetivo de idade para a oitiva de crianças. Cabe ao juiz decidir se cabe ou não a ouvir, se ela tem maturidade para ser ouvida. Na França, os Tribunais franceses admitem a oitiva entre 7 e 9 anos. Na Itália, o critério objetivo de idade estabelece o limite mínimo de 12 anos, assim como criança de idade inferior, desde que se considere capaz de compreender, de ter “discernimento”. Nesta jurisdição, cabe ao juiz verificar e convencer-se que o depoimento da criança seja contrário ao seu interesse ou não seja necessário. A capacidade do magistrado de deparar-se com a criança fisicamente e ouvi-la permite, de fato, a ele conhecer o estado em que se encontra a criança, assim como as dinâmicas que relacionadas em que participa e também verificar suas posições sobre a situação em que se encontra e que projeto de vida formula para o futuro, como resultado desta audição, motivando uma decisão que devidamente tenha em conta a sua vontade. Na Alemanha, a idade mínima para oitiva da criança é de 14 anos, admitindo-se exceções porquanto a doutrina e jurisprudência daquele país admitem que há consenso para a determinação dos desejos e sentimentos da criança a partir dos 3 anos de idade. Para Lohrentz, “o contato direto da criança com o Tribunal é de um valor incalculável pela fonte de informação que proporciona, em especial nos assuntos relativos à pessoa, que ao mesmo tempo servem como barômetro para obter uma resolução judicial de acordo com o interesse do menor”.11

    Nos países de cultura anglo-saxã, não é diferente. No Reino Unido, a idade mínima para que a criança seja ouvida em juízo é de 4 anos. Vale mencionar que naquela jurisdição o direito de a criança ser ouvida se dá de forma indireta, através da Children and Family Court Advisory and Support Service (“Cafcass”), que nem sempre ouve o menor. A Cafcass vem a ser um organismo não governamental criado para salvaguardar e promover o interesse das crianças em procedimentos de família. Fundada em 2001, por disposição da Lei de Serviços da Corte e Justiça Penal, a Cafcass é responsável perante o Parlamento, atualmente através do Ministério da Justiça. Trata-se de um organismo independente dos Tribunais, dos serviços sociais, das autoridades educativas e de saúde de outros organismos similares. Basicamente este organismo se encarrega de velar pelo interesse das crianças com as suas famílias, e posteriormente informa aos tribunais o que se considera ser o melhor interesse da criança. Nos Estados Unidos não há uma lei federal que dispõe sobre a oitiva de crianças, cabe aos estados defini-lo, muito embora a maioria dos estados não têm essa previsão, cabendo ao juiz decidir sobre a oportunidade ou não da oitiva. Há casos de crianças de 8 e 9 anos que foram ouvidas. Todavia, reitero que o importante é possibilitar a oportunidade de se ouvir a criança em qualquer processo de audiência judicial ou administrativa. Tanto que o artigo 20 da Convenção estabelece que:

    “Artigo 20

    O retorno da criança de acordo com as disposições contidas no Artigo 12° poderá ser recusado quando não for compatível com os princípios fundamentais do Estado requerido com relação à proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais”.

    Nota-se, portanto, que os relatos podem também ser um argumento de defesa para o não traslado ao país de residência habitual e, nesse caso, se faz necessária até para a criança eventualmente manifestar a sua objeção ao retorno, como nos ensina Carolina Marin Pedreño:

    “Siendo el objeto del Convenio asegurar la pronta restituición del menor, cuando este haya alcanzado una edad y grado de madurez suficiente, es decir, que aconsejen tener en cuenta su opinión, y siempre que la defensa se haya construido sobre esto, el juéz podrá, según su discreción, decidir sobre la conveniencia o no del retorno, y, en consecuencia, odenarlo o no.

    En este orden de cosas, conviene que sepamos que puede objetarse el regresso a um país determinado, pero no a um cuidador em particular, no estabelecendo el Convenio uma edad mínima del menor para que su opinión (objeción) pueda ser tenida em cuenta.”12

    Essa situação está prevista no artigo 13 da Convenção, que prevê a possibilidade de objeção de retorno da criança ao seu país de residência habitual, desde que ela tenha atingido idade e grau de maturidade que permitam levarem em consideração as suas opiniões sobre o assunto.

    Nesse mesmo sentido, como afirma Glícia Brazil: “O Direito e ser escutada não pode ser confundido com o dever de falar, gerado pela coação moral”. Por vezes, quando sofre violência moral, “respeitar a fala da criança é ordenar que ela se cale”.13

    A Convenção não prevê justificativas das crianças baseadas, por exemplo, em questões como adaptação à escola ou outro argumento que se refira ao seu pretenso bem-estar. A objeção deve tratar de questões relevantes, como a alienação parental, contínuas agressões físicas, psíquicas ou sobre abuso sexual, cometidas por seus responsáveis ou genitores que permaneceram no local de sua residência habitual.

    Nessas oportunidades, quando não houver acordo, caberá à Autoridade Central solicitar ao juiz que a criança possa se manifestar e o mesmo, munido com as informações sobre a situação daquele caso em específico tem o poder para deliberar, segundo o melhor interesse da criança. Mas, é preciso cautela para não haver confusão com o desejo do vulnerável, considerando que nem sempre há maturidade o suficiente para decidir, como afirma Rolf Madaleno: “Tudo o que o juiz não pode é confundir o bem do menor com o desejo do menor, pois nem sempre sua vontade é suficientemente madura para decidir pelo que realmente lhe convém.”14 Claro está que não se trata da aceitação incondicional do desejo da criança que inclusive pode resultar prejudicial para sua formação e seu real interesse. Sua palavra não é vinculante e deve ser valorada com os demais elementos do juízo. Mas a criança sempre deve ter a oportunidade de ser ouvida, se a sua idade e maturidade assim o permitirem. A partir daí o trabalho dos auxiliares profissionais do juízo como, por exemplo, os psicólogos, quando for o caso, faz toda diferença e deve ser acionado. Também é recomendável que a oitiva seja realizada em ambiente neutro, para evitar qualquer tipo de trauma, em conformidade com as regras processuais da legislação nacional, bem como, por meio de um profissional tecnicamente capacitado, para o cumprimento das normas na produção de perícia psicológica.


    5 MONACO, Gustavo Ferraz de campos. Direitos da criança e a adoção internacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 74.

    6 CAMARGO, Solano de. O Direito da criança ser ouvida – aspectos internacionais. Famílias Internacionais: seus Direitos, seus Deveres / Hughes Fulchir; Gustavo Ferraz de Campos Monaco (organizadores). São Paulo: Intelecto Editora, 2016, p. 256.

    7 SILVA, José Affonso da. Direitos Humanos da Criança. Revista Trimestral de Direito Público. São Paulo: Malheiros, 1997, 9.10

    8 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil; tradução de: Maria Cristina De Cicco. 3.ed., rev. e ampl.. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pp. 259 – 260.

    9 GROSSMANN, Cecilia P.. Nuevos perfiles del derecho de família/ coordinado por Aída Kemelmajer de Carlucci y Leonardo B. Pérez Gallardo. 1ª edição. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni, 2006, pp. 208 – 209.

    10 ALABART, Silvia Diaz. Nuevos perfiles del derecho de família/ coordinado por Aída Kemelmajer de Carlucci y Leonardo B. Pérez Gallardo. 1ª edição. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni, 2006, p. 388.

    11 LOHRENTZ, U. “Anhang II Verfahrensgrundsätze”, em Handbuch Anwalt des Kindes, verfahrensbeisstandschaft und Umgangspfelegeschaft für Kinder und Judendliche (w, Rochling editor), Nomos Praxis, 2009, p. 282.

    12 MARÍN PEDREÑO, Carolina. Sustracción Internacional de Menores. Málaga: Editorial Ley 57, 2015, p. 60 – 61. 13 BRAZIL, Glícia Barbosa de Mattos. In Famílias e sucessões: polêmicas, tendências e inovações / coordenado por Rodrigo da Cunha Pereira e Maria Berenice Dias. Belo Horizonte: IBDFAM, 2018, p. 517. 14 MADALENO, Rolf, Curso de direito de família. 4ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 324.

    Conclusões

    Pode-se fazer uma analogia entre a Convenção e o “quadro de uma paisagem”. A criança não é parte diretamente, mas é a protagonista dessa paisagem, cujo resultado da aplicação da Convenção a afeta e a torna a figura principal. Os Estados contratantes, autoridades e partes envolvidas têm de trabalhar dentro dos limites deste quadro, não podem ultrapassar os limites da moldura deste quadro. O rito é especifico, a resposta tem de ser rápida. Portanto, não se aplicam nesses casos as regras ordinárias do curso normal do processo. Por exemplo, os psicólogos não devem ser ouvidos, pois se demandaria um tempo excessivo para a decisão, salvo se o juiz entender que a complexidade

    do caso o justifique, e determine que se ouça a criança com o auxílio de profissionais, em caráter excepcional, em tempo exíguo, muito embora essa possibilidade não esteja prevista na Convenção.

    Portanto, vale lembrar, que nem a prática de ouvir a criança prevista na Lei n. 13.431/17, artigo 8º, o denominado “Depoimento Especial” deve ser observada, porquanto caberá ao Juízo natural essa medida – “Art. 8º Depoimento Especial é o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária”.

    Todavia, a realidade tem demonstrado que a maioria dos magistrados brasileiros entende que o rito comum deva ser aplicado aos processos de sequestro internacional de crianças quando da apreciação pelo Judiciário, mas, na realidade, não é correto que seja dessa forma, porquanto não é isso que está previsto na Convenção. Embora a Convenção não fixe uma idade mínima para que a criança seja ouvida, todos os dispositivos ali dispostos estão elencados em seu benefício. Portanto, faz-se necessário respeitar a Convenção, em todos os seus termos, dela extraindo-se o melhor resultado para sua efetividade que é fazer cumprir a solicitação com rapidez e respeitar o traslado ou devolução da criança para o seu país de residência habitual ou que seus direitos de convivência ou visitação sejam observados e preservados. Para tanto, reitera-se, a aplicabilidade que tem de ser célere, como mencionado, e deve ser apreciada também como interpretação sistêmica, isto é, aplica-se a Convenção, em conjunto com as demais normas de âmbito internacional, entre elas a Convenção sobre os Direitos da Criança, que estipula que a criança deve ser ouvida sempre que a sua situação de idade e maturidade o permitir. Caberá ao magistrado, como intérprete da lei e aplicador da Justiça assim proceder, para que tenha todos os elementos necessários disponíveis para sua melhor convicção. Somente assim, este “quadro de uma paisagem” estará plenamente apreciado e cumprido, possibilitando à criança o melhor resultado para a situação concreta.

    Segundo dados da Autoridade Central Administrativa Federal para Adoção e Subtração Internacional de Crianças e Adolescentes (ACAF),15restrita aos casos em que foi demandada, somente em 2020 – primeiro ano da pandemia de COVID-19 – foram registrados 103 casos (66 ativos e 37 passivos), incluindo subtração e visitas. Dentre esse total, foram reportados 90 casos de subtração (57 ativos e 33 passivos), ou seja, o Brasil demandou mais como país requerente. Relativamente à solicitação de vistas, houve 13 casos (9 ativos e 4 passivos). Neste mesmo ano, também foram concluídas 122 ocorrências: 96 de subtração (66 ativos e 30 passivos) e 26 de solicitação de visitas (18 ativos e 8 passivos).

    Entre 2016 e 2019, houve 509 casos iniciados (2016: 102/ 2017: 109/ 2018: 124 e 2019: 174), uma média de pouco mais de 127 por ano. Porém, é importante observar que em quase todos os anos os casos ativos superaram os passivos, exceto em 2016. Relativamente àqueles encerrados entre 2016 e 2020, foram 402 (2016: 122/ 2017: 73/2018: 88 e 2019: 119), apresentando na média de 100 casos por ano, menor que 2020. Todos estes dados, bem como informações mais detalhadas, inclusive sobre quais são as jurisdições mais demandantes, assim como aquelas que são mais demandadas em processos de sequestro internacional de crianças, estão descritos no Anexo I a este artigo (ANEXO I).

    Curioso é que em casos passivos ocorridos nos períodos mencionados, com exceção de 2019, a maioria encerrou-se por acordo ou ato voluntário, em detrimento de decisão judicial. Todos esses números também demonstram que as situações relativas a sequestro internacional de crianças são significativamente baixos, considerando que o Poder Judiciário contabilizou, em 2019, entre os assuntos mais demandados no primeiro grau de jurisdição: 1.135.599 casos (3,79% do total de processos), na área de Direito Civil – Família/Alimentos, de acordo com o relatório “Justiça em Números 2020”16, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

    Diante de todos os dados e informações apresentadas no presente artigo, é possível afirmar que a previsão legal existe, porquanto o Brasil ratificou e aderiu à Convenção sobre os Direitos da Criança. E é óbvia a necessidade de respeitarmos e cumprirmos estas regras também para esclarecer ao mundo que o país visa o melhor interesse da criança. Mas, é preciso cuidado, porque na maioria das vezes a voz da criança – seja de alguém que esteja na infância ou na adolescência – não recebe a devida importância para que o magistrado possa constituir plenamente a sua convicção e tomar a melhor decisão para o futuro de um ser humano ainda em fase de formação e que merece um porvir promissor, na consecução do desenvolvimento saudável de sua personalidade, bem como na busca por sua integral felicidade.


    15 Dados fornecidos pela Autoridade Central Administrativa Federal para Adoção e Subtração Internacional de Crianças e Adolescentes (ACAF/DRCI/MJSP).

    16 Sítio https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/WEB-V3-Justi%C3%A7a-em-N%C3%BAmeros-2020-atualizado-em-25-08-2020.pdf, p. 240.

    ANEXO I – Pedidos de Cooperação Jurídica Internacional recebidos ou enviados pela Autoridade Central Administrativa Federal para Adoção e Subtração Internacional de Crianças e Adolescentes, do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional, Ministério da Justiça e Segurança Pública (ACAF/DRCI/MJSP) de 2016 a 2020

    Nota 1: Dados fornecidos pela Autoridade Central Administrativa Federal para Adoção e Subtração Internacional de Crianças e Adolescentes, do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional, Ministério da Justiça e Segurança Pública (ACAF/DRCI/MJSP).

    Nota 2: Os dados não incluem a totalidade dos casos relacionados à Convenção da Haia de 1980, mas somente daqueles detectados pela ACAF, podendo conter divergências de classificação quanto à tipologia.

    Nota 3: Antes de 2016 não havia compilação oficial da Autoridade Central brasileira sobre o tema.

    Detalhamento 2020 por país:

    Bibliografia

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