Supressão de Garantias Creditícias sem Anuência dos Credores em Recuperação Judicial: ilegalidade e inconstitucionalidade.
31 de maio de 2022, por José Luiz Ragazzi e Lúcia Helena Polleti Bettini, sócios do Tortoro, Madureira & Ragazzi Advogados
Ao tratarmos do tema solvência de empresas, obrigatoriamente, identificamos empresas saudáveis e cumpridoras de suas obrigações, que se traduz em mercado financeiro saudável e vai ao encontro da Constituição econômica, afirmada e legitimada pelo olhar atento aos princípios da ordem econômica e financeira que não estão adstritos somente à manutenção das empresas e da liberdade de se estabelecer como alguém que irá explorar um setor econômico na qualidade de empresário. É conceito muito mais alargado e que afeta outras partes envolvidas, ainda que de forma indireta, ultrapassa a relação jurídica de base para discussão do tema, credor e devedor, e caminha para outros locais constitucionais, além da leal concorrência, função social e defesa da propriedade particular, defesa do consumidor e do meio ambiente, entre outros.
O mercado saudável deriva do desenvolvimento de atividades empresariais, e de forma imediata, é orientado e limitado por inúmeros princípios regentes da ordem econômica e financeira e valores muito caros ao nosso Estado, entre eles, a valorização do trabalho e a livre iniciativa que caminham juntos, sempre norteados pelos ditames da justiça social e da dignidade da pessoa humana. Portanto, se apresentam como razão muito maior que o isolado cumprimento de obrigações. Trata-se da confiança no mercado, da segurança nas relações jurídicas em base que preserva a igualdade nas interrelações, que são oriundas do pacto social de 1988 e deve afirmar e viabilizar o respeito ao outro, com o reconhecimento da alteridade, pois nossa existência não acontece de forma isolada, o que, de forma mediata, atinge também os direitos fundamentais sociais em sua aplicação e efetividade, núcleo material de concretude da dignidade humana e justiça social.
Esse é o referencial teórico proposto, ético e jurídico, para se discutir da constitucionalidade da supressão das garantias em recuperações judiciais sem anuência dos credores, sendo que tais garantias existem para manter o equilíbrio entre as partes e estado de solvência, que, conforme entendemos, tem efeitos muito mais alargados que simples relação obrigacional entre o credor e o devedor, ultrapassa esses envolvidos originariamente e afeta o mercado, a Constituição econômica, a confiança e a segurança que ele deveria determinar, que sustenta a livre iniciativa e os trabalhos dignos e deve ser mantida inclusive por regulação e intervenção estatal.
A possibilidade de buscar garantias creditícias para a manutenção do estado de solvência, é instrumental muito utilizado por vários na liberdade de empresa, também na qualidade de devedores quando em dificuldades, o que permite a essas empresas a manutenção de seus compromissos que são maiores que os imediatos pois, trata-se do cumprimento de missão constitucional, de uma atuação voltada para o que sustenta o equilíbrio da ordem econômica e financeira, o que se traduz em confiança, em manutenção da segurança das relações jurídicas, sendo os atores dessa atuação protagonistas do cumprimento da Constituição econômica, e para sua realização e efetividade dependem do cumprimento de obrigações, tanto de credores como dos devedores que a sustentam. Neste contexto, ressaltamos a importância das instituições responsáveis pelo financiamento de diversas atividades por meio de crédito, com o papel importantíssimo da manutenção ou busca de um mínimo de igualdade para que a leal competição aconteça ou permaneça.
Mesmo com a possibilidade de financiamentos, muito comuns e recorrentes em tempos de crise, com a intenção de alcançar o patamar de equilíbrio, a busca pela recuperação judicial de empresas tem se apresentado de forma recorrente. Pede-se a intervenção do Estado por meio do Judiciário, que deve manifestar em equação entre Direito e Economia que seja justa e conforme a Constituição, sendo premissas decisórias a legalidade e a equidade que se apresentam como razões de tais decisões. Ou seja, o que se busca em uma decisão justa e pautada pela legalidade, é a preservação dos direitos dos envolvidos e afetados, tanto de forma mediata como imediata.
Neste momento, a discussão sobre a ilegalidade e inconstitucionalidade de supressão de garantias sem a anuência do credor, é matéria de grande relevância, vez que, tal pedido vem ancorado e justificado na manutenção das empresas que se encontram em dificuldades, em estado de insolvência e com plano de recuperação judicial, muitas vezes atendido ademais da legislação ser expressa no sentido de que há necessidade de concordância do credor. Ou seja, ao lado da ilegalidade já reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça em seus votos sobre a matéria, vez que se suprime garantia sem a anuência do credor, conforme norma expressa na Lei de Recuperação Judicial, as constantes solicitações de empresas que não alcançam a continuidade dos seus negócios, o que muitas vezes, está evidenciado em plano recuperacional que não demonstra de forma detalhada o possível alcance do equilíbrio para sua continuidade, além da falta da concordância do credor e legalidade.
A impossibilidade de manutenção de muitas dessas empresas somadas à ausência de ratificação pelos credores de tais supressões de garantias, é justamente o contrário do que as justifica, pois, na sequência, o que temos observado muitas vezes, é a interrupção das atividades pela quebra destas empresas e de outras inúmeras obrigações inadimplidas, com efeitos muito significativos e ampliados, conforme já explanamos, entre eles, por exemplo, também o desequilíbrio da igualdade na busca de instituições financeiras que não poderão praticar as mesmas regras para os que delas necessitarem.
Vale enfatizar que a supressão das garantias na situação descrita e discutida no presente artigo, além da ilegalidade, traz uma inconstitucionalidade, afetando a liberdade de empreender de forma individual e coletiva e o que a justifica e fundamenta. A busca por financiamentos envolve muito mais atores que os descritos na obrigação originária, os perpassa e atinge a coletividade, na medida que a confiança e a segurança nas relações jurídicas sai diminuída e atinge outros possíveis integrantes do mercado.
Atinge, desta feita, a Constituição econômica no que lhe é fundante, na dignidade humana e justiça social, ao lado da razão da existência da garantia creditícia que é a manutenção da empresa e do estado de solvência. É o mercado que sai afetado e com consequências para muitos outros atores sociais que deixam de se beneficiar pelo efetivo cumprimento das obrigações, numa tentativa de pedido feito ao judiciário para sua manutenção, mas sem respeito ao mandamento legal e apresentação de detalhamento que traga um mínimo de segurança de que irá permanecer e se sustentar sem efeitos negativos aos envolvidos, especialmente credores e coletividade.
O reconhecimento de que empresa é a atividade e não o sujeito que realiza a gestão da mesma ou a pessoa jurídica, traz a resposta a essas demandas recorrentes que são levadas ao judiciário no sentido de alcançar a manutenção da empresa em desacordo com comando normativo expresso da Lei de Recuperação Judicial, qual seja, a supressão de garantias aos credores sem a sua expressa concordância na tentativa de viabilizar a atividade empresarial. É a funcionalidade do sistema jurídico que está em jogo e a eficácia dos direitos individuais e sociais que se mostram flexibilizados e, o que é pior, contrários à Constituição.
Entendemos desse modo que as normas jurídicas, devem ser interpretadas conforme a Constituição e a melhor interpretação é a que privilegia o texto da lei amplamente discutido para ser constitucional não só formal como materialmente, ou seja, a supressão de garantias sem a anuência do credor vai de encontro com a unidade e supremacia constitucional, pois os princípios da ordem econômica e financeira são limites expressos e se somam à eficácia dos direitos fundamentais que restam afetados de maneira negativa, ou seja atingidos na sua efetividade e consequente dignidade humanas e justiça social, contrário ao aspecto material da sua constitucionalidade
A busca da confiança, da segurança e do equilíbrio às respostas que envolvem o Estado, Direito e Economia, saem diminuídos, e portanto, devemos questionar sobre a constitucionalidade das decisões que envolvem a supressão de garantias em desrespeito à disposição expressa de lei que afirma a necessidade de concordância do credor, vez que os processos econômicos, políticos, sociais e culturais se apresentam complementares e indissociáveis, e devem refletir na afirmação da vontade de Constituição, no presente estudo aos limites expressos que também são fundantes do Estado brasileiro, valores sociais do trabalho, existência digna e justiça social.